Monday, February 16, 2004

Diálogos com Antonio Abrantes:
> Denis, estou lendo um livro de Milton Vargas, "Para uma filosofia
da tecnologia", onde ele diz que a tecnica nasce com o homem. Ou
seja, a antropologia e os historiadores da tecnologia entendem que os
primeiros homens, da idade da pedra, ja desenvolviam utensilios.
Assim a tecnica é tao antiga quanto o proprio homem. A tecnologia por
outro lado nasceria quando do surgimento da ciencia moderna no seculo
XVI, quando pela primeira vez se consegue elaborar os artefatos
tecnicos tomando-se como ponto de partida modelo teoricos
desenvolvidos pela ciencia. A tecnologia presume assim uma tecnica
planejada, nao mais baseada unicamente nas habilidades do artesao,
mas um procedimento que passa ser metodico e que pode ser reproduzido
por outra pessoa desde que siga a mesma metodologia. Ou seja, a
palavra tecnica admite um conceito extremanente amplo. Se o utensilio
de pedra lascada é considerado pelos historiadores da tecnologia,
como tecnica, entao que dirá um programa de computador. Nao ha como
sustentar que um programa de computador nao possui efeito tecnico. É
uma argumentação sem embasamento historico e que corrompe o
significado da palavra tecnico.

Antonio, a questão é exatamente a história. Se você se lembra do
texto que lhe citei, menciono a tese do caso Morse, para indicar que
também nos Estados Unidos a noção do técnico presumia a alteração dos
estados da natureza. Não há nada mais histórico - na propriedade
intelectual - do que o caso Rote Taube, e da expressão do requisito
do técnico num contexto de absoluta contemporaneidade.


Agora explico os fundamentos da minha posição - de que sem alteração
dos estados da natureza não há invento. Em Direito, uma escolha da
forma de incentivar uma atividade humana - no caso, a criação
tecnológica - com uma espécie de exclusividade de mercado nunca é
casual. Suprimir a liberdade de uma atividade - a exploração do
mercado com uma certa tecnologia - através de concessão de uma
exclusividade importa em enfrentar o princípio constitucional número
um da esfera econômica: o da liberdade de iniciativa (Constituição,
artigo PRIMEIRO, IV).


Isso só é possível - afrontar a liberdade econômica pela
exclusividade de mercado - porque há um balanço de interesses. Como
já notava Adam Smith, pela tendência à dispersão do investimento em
tecnologia (o natuural na economia é a cópia...), o mercado tem de
sofrer necessariamente uma intervenção estatal, pela criação de
mecanismos COMO a patente. É a famosa falha de mercado, em presença
da qual mesmo Adam Smith propugna que o Estado introduza uma
artificialidade jurídica.


Esse balanço de interesses, que é realizado na e pela Constituição é
feito com muito cuidado; como eu lembro no capítulo constitucional do
Uma Introdução (2a. Ed.), além dessa questão de concorrência, ainda
existem os seguintes interesses a serem ponderados:


a. A colisão entre a proteção dos interesses do investidor e do
criador e o princípio do uso social das propriedades.
b. A cláusula finalística da propriedade industrial.
c. Os parâmetros constitucionais de proteção à tecnologia, a
autonomia tecnológica e à cultura.
d. As liberdades constitucionais de criação artística e de
expressão.
e. A tensão de interesses entre a economia nacional e o capital
estrangeiro.


No caso das patentes o equilíbrio é dado pelo conceito de novidade
(absoluta, cognescitiva), pelo critério de atividade inventiva, pela
necessidade de publicação, pelo prazo, pelas licenças compulsórias,
pela regulação dos royalties dedutíveis e remissíveis, pela exigência
do best mode, pelas limitações ao direito (liberdade de pesquisar com
o invento, uso privado, farmácias de manipulação, etc). Mas tudo isso
é dosado, medido e calculado em face de um conceito de invento como
técnico - invento como uma solução técnica - uma criação que afeta
os estados da natureza.


Entenda, eu não me oponho que haja uma proteção às tecnologias não
técnicas (assim entendidas às que não afetem os estados da natureza).
O que eu insisto é que essa proteção NÃO É A PATENTE.


No caso de variedades de plantas, por exemplo, o equilíbrio
constitucional é modulado e formulado diferentemente. A novidade é
outra, os condicionantes são outros. No caso de segredo de empresa,
há um outro equilíbrio (mesmo porque não há exclusividade...). No
caso de software é outro equilíbrio.


Minha questão, assim, é de encontrar o equilíbrio constitucional
adequado para as tecnologias não técnicas (no sentido Rote Taube).


Falando da repressão à imitação servil (outro problema diferente, não
é?) eu digo no mesmo livro:



"A questão do uso de dados e criações de terceiros sem investimento
próprio torna-se especialmente importante no que diz respeito à
chamada engenharia reversa. Dentro do princípio de que há um direito
constitucional à livre cópia, a engenharia reversa aparece como uma
das práticas mais socialmente justas.


Como nota um dos mais reputados juristas americanos, tratando do caso
Bonito Boat, que exatamente afirmou a liberdade de cópia como uma
exigência natural da economia de mercado :


"O Tribunal, desta forma, relegou os produtos não patenteados nem
protegidos por direito autoral ao mercado livre, e deu foros de
constitucionalidade à prática de engenharia reversa "


A questão não é assim, de recusar o interesse econômico privado, mas
de traçar, com base no interesse público, um justo equilíbrio entre a
pretensão de quem quer garantir investimentos em produção de obras
não suscetíveis de direitos de exclusiva, e a de quem exerce sua
liberdade de copiar e aperfeiçoar-se.


As leis de proteção aos semicondutores re-introduziram a questão
deste equilíbrio, de uma forma distinta do balanceamento das patentes
(que não admite engenharia reversa) e do trade secret (que o supõe
como essencial). Tais leis permitem especificamente o direito à
engenharia reversa, e simultaneamente, proibem a cópia servil - ou
seja, sem investimen-tos próprios do copiador - durante certo prazo,
mesmo no caso de topografias não registra-das.


Na esteira de tais leis, duas importantes inovações legislativas
consagraram, recentemente, a doutrina da cópia servil.A primeira é a
Lei Suíça de Concorrência Desleal de 1986, que exige dos competidores
a realização de investimentos em engenharia reversa mesmo quando a
tecnologia não seja secreta. Os tribunais suíços, porém, têm
rejeitado ou limitado severamente a aplicação de tal norma, pela
inexistência de prazo e limites na vedação.


A Lei Japonesa de Concorrência Desleal de 19 de maio de 1993 adotou
igualmente uma disposição de caráter geral, proibindo a imitação
servil, mesmo no caso de produtos não patenteados, nem protegidos por
direitos autorais. Mas, ao contrário da lei Suíça, a japonesa impõe
limites claros à aplicação da norma de apropriação ilícita: o lead
time vigora ape-nas por três anos, não se protegem as idéias e os
conceitos técnicos, e ressalva-se o caso de modificações ou
aperfeiçoamento técnico efetuado pelo competidor com base no item
copi-ado, a necessidade de padronização e compatibilização de
produtos e o uso de elementos de caráter estritamente funcional.


Ou seja, a proibição de imitação não impede o progresso técnico,
ressalva o domínio das patentes para proteger idéias e conceitos, e o
interesse social na padronização e compatibilização industrial.
Não me parecem erradas tais propostas. Uma vez que representem uma
equação legislativa e presumivelmente constitucional de equilíbrio de
interesses, resguardando tanto a equidade entre partes quanto a
utilidade social, serão mais ou menos eficazes, mas seguramente serão
soluções de Direito."



Tanto eu acredito que se deva proteger as criações não técnicas que,
quando me foi dado introduzir na Constituição (eu era Procurador
Geral do INPI na época) o artigo relativo à propriedade industrial,
coloquei lá uma disposição, além dos inventos industriais, falando de
outras criações.


Quanto a elas, digo na parte constitucional do mesmo livro:


"Ao propor tal texto, como terminou por ser incorporado à
Constituição, o autor tinha em mente a teoria das criações
industriais abstratas, que se deve a André Lucas. São elas
simultaneamente industriais, no sentido de serem práticas, destinadas
a uma finalidade econômica, mas abstratas, pois não resultam em
mudanças no estado da natureza. Exemplos seriam os sistemas ou
métodos de produção ou organização da produção, como o método PERT, e
os programas de computador.


Como se verá, por serem abstratas, tais criações não satisfazem os
pressupostos de patenteabilidade, especialmente o requisito de
utilidade industrial."



Assim, Antonio, a minha postura é de que essas criações que você quer
proteger por patente - e eu insisto que proteger por patente é caso
de polícia - têm de encontrar um meio diverso de tutela, com um
outro equilíbrio constitucional. Como os japoneses e suíços
encontraram no caso de engenharia reversa.


Vou acabar citando uma palestra que eu dei III REDETEC em 2000:


"Reichmann diz que deve-se examinar a cada momento se a proteção
mínima ou a proteção adequada ou a proteção razoável não atendem mais
eficazmente aos interesses da competição. O valor da patente, ou o
valor do software, deve ser avaliado não em função do atendimento das
utilidades finais, mas, sim, em função da capacidade de aumento da
competitividade que a propriedade intelectual tem. O valor da
patente, neste universo em que estamos, não é o atendimento ao doente
africano.


O valor da patente, ou o valor comparativo dos vários sistemas da
propriedade intelectual, é a capacidade que a patente tem de
propiciar maior competição no mercado. Dentro dos pressupostos de que
a mão do mercado a tudo apalpa e a tudo acaricia e que dela resultam
todas as benesses da humanidade, a patente, o direito autoral, o MP3,
todos esses novos, e sempre novos, sistemas de proteção e de uso da
tecnologia devem ser avaliados em sua capacidade de aumentar a
competição.


O propósito dessa palestra é tentar extrair de vocês a percepção de
que a propriedade industrial tem algum propósito de beneficiar o
consumidor. É extrair de vocês a idéia de que a propriedade
industrial tem alguma finalidade de atendimento às necessidades
básicas da humanidade. A propriedade industrial tem, nesse Fusca em
que fomos colocados pelo contexto histórico, uma única finalidade:
melhorar a competição dentro do próprio sistema capitalista. E, se
ela não servir, se estiver, pelo contrário, criando monopólios dentro
desse Fusca, essa patente está sendo usada contra o seu valor
intrínseco que é aumentar a competição.


Dr. Pontes de Miranda, um jurista clássico, famoso, antigo,
enciclopédico e nunca lido, ao tratar de propriedade intelectual diz
exatamente isso. E diz com todas as letras: "A propriedade
intelectual não é feita para regular ou beneficiar o público, é feita
para regular a competição". E é essa a mensagem que passo sobre o
valor da patente. "


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