Agora vem um tema engraçado. O que cai no domínio do público no Brasil são os direitos patrimoniais. Persistem alguns dos direitos pessoais, ditos morais, como o de integridade da obra.
Esse direito específico tem a seguinte
Art. 24. São direitos morais do autor: (...)
IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra.
Assim, se tem uma norma complexa: o titular desse direito pessoal pode opor-se a quaisquer modificações da obra, desde que possam prejudicar ou atingir o autor em sua honra ou reputação. Somam-se duas coisas para se ter o direito pessoal: violação da obra como concebida e mais lesão ao valor honra ou reputação.
É preciso ficar bem claro que se tem uma tutela aqui de interesses pessoais. Não se trata da defesa da cultura, que resvala num tombamento ou outra medida de resguardo comparável, mas não se volta à honra ou a reputação do autor, pessoalmente. O autor pode odiar a sua obra com as veras d' alma e rezar para que a destruam; pode arrepender-se de jamais a ter concebido; mas o interesse pública na preservação da obra íntegra se oporia a isso.
Pois existe o direito à integridade da obra como testemunho do processo cultural, numa permanência que se impõe pelos interesses ao acesso à cultura e outros valores; e existe a tutela da honra e reputação do autor, o que é coisa diversa. O exemplo do TJRS, AC 70018223735/2006, Décima Câmara Cível Rel. Des. Paulo Antônio Kretzamm, 29 de março de 2007 é ótimo para provar esse ponto: o tribunal gaúcho reconheceu que um livro de gramática cheio de erros introduzidos pelo editor abalava a reputação do gramático autor. Ou pelo menos diluia seu fundo de comércio....
Esta integridade que se defende no art. 14, IV da LDA é a que tutela a honra ou reputação do autor. Assim há distintos interesses jurídicos na integridade de uma obra, que não necessariamente se alinham.
A questão se torna ainda mais enevoada quando se notam certos autores que afirmarem que, uma vez os direitos patrimoniais caiam no domínio do público, esse poder de resguardar a honra e a reputação do autor passaria para o estado ou o Ministério Público (por exemplo, Rodrigo Moraes). A meu ver o estado não se sucede nesse direito pessoal, mas assume o direito de tutela da cultura, quando e se a obra exerce esse testemunho.
Mas reviendrons à nos moutons. A questão de Saint Éxupery (que tem jiboia e raposa mas não necessariamente carneiros) é a edição desse livrinho que se vê na ilustração, do qual (está na capa) as aquarelas também são do autor. Será que outros editores, com amparo no domínio do público, podem lançar edições com outra diagramação, diversa da original, sem ofensa ao art. 29? Afinal, caiu em domínio comum....
Parece que não. A diagramação original, que deve ser complicada senão os novos editores não a estariam rifando nas publicações 2015, parece ser parte da concepção original. Digo "parece" porque há sim uma alteração esteticamente relevante se você abandona a diagramação feita pelo Saint Éxupery. Se tal modificação invade a honra e reputação do aviador morto são outros quinhentos. Mas há sim violação à integridade da obra como concebida. A diagramação não era uma conveniência, mas elemento do processo criativo.
Pois é o que conta a biografia do autor, escrita por Stacy Schiff (que ganhou o Pulitzer ainda que não com esse livro) e publicada pela Da Capo Press (1996). Lá pela p. 389, o biógrafo narra:
"He continued through the early part of the winter, to fiddle with his illustrations for The Little Prince and to agonize over their proper placement in the text"O autor sofria agonicamente com a diagramação. Não sei se isso põe em questão honra ou reputação, mas certamente merece tutela de direitos pessoais.