Monday, February 16, 2015

Patentes essenciais a um padrão: a alteração da política do IEEE.

A questão de pools de patente - a junção de várias patentes de titulares diversos sob algum tipo de administração conjunta - é coisa antiga em Propriedade Intelectual. Na dissertação do meu primeiro mestrado, em 1982, dizia-se o seguinte:
O "pooling" de patentes não é, por si dó, uma prática abusiva; é, no entanto, uma das maneiras mais eficazes de controle de um mercado, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"(1).
Mais recentemente, como a questão das patentes essenciais a um padrão técnico (como DVD, ou USB) se tornou um dos temas mais importantes do momento,  tive a oportunidade de escrever e orientar academicamente sobre a matéria, e dar até agora dois pareceres (2).

O tema surge quando múltiplos agentes econômicos pactuam um determinado padrão técnico, com tecnologias subjacentes que se encontram no escopo de múltiplos titulares. A adoção de um desses padrões por uma organização especializada (como a IEEE, que é algo análogo à nossa ABNT, ou outra) ou por um arranjo ad hoc (aí, sim, um patent pool clássico) vai presumir que as patentes sejam colocadas num commons (ou espaço de uso comum) fechado aos membros que contribuem com patentes.

Mas a criação de um padrão, se o commons é fechado aos contribuintes de patentes essenciais, estabeleceria um enorme poder para os que estão dentro, e uma colossal exclusão para os que estão fora. Ocorreria a hipótese de que eu falava em 1982, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"...

Assim, os órgãos antitruste ou - eventualmente -  o bom senso das organizações padronizadoras impõem àqueles que querem colocar patentes como essenciais num padrão que se comprometam a ofertar licenças a terceiros indiscriminados - qualquer um, na verdade - em condições justas, equânimes e razoáveis (daí o acrônimo RAND ou FRAND), que qualifica essas ofertas de licenças.

http://www.ftc.gov/sites/default/files/attachments/press-releases/google-agrees-change-its-business-practices-resolve-ftc-competition-concerns-markets-devices-smart/google-patents.jpg
Tudo bem então: os padrões aproveitam à economia de redes e ao público em geral, e não só os que contribuem patentes, mas todos agentes econômicos passam a ter acesso à tecnologia padronizada. O melhor dos mundos para todo mundo.

É aí que vem o comportamento oportunístico para solar o bolo.

De um lado, daqueles terceiros que querem a facilidade sem pagar os royalties das licenças ofertadas, nem cumprir com suas condições. Pois as licenças FRAND podem ser gratuitas, ou não. Desde que justas, equânimes e razoáveis, elas podem ser pagas, em princípio sem infração das regras.

De outro, dos titulares de patentes que, beneficiários da inclusão de sua exclusiva num padrão de mercado - o que torna a patente inevitável mesmo se houver alternativas tecnológicas - que se valem de sua posição de poder para escorchar terceiros.

Assim é que, faz algum tempo, titulares de patentes (ou os famigerados trolls, que adquirem patentes que não criaram, ou o direito de as usar em ações judiciais) têm utilizado patentes essenciais para falsear as condições ótimas de um padrão sob oferta FRAND; e múltiplos agentes econômicos vão empurrando com a barriga suas obrigações para com os titulares. Ladrões que roubam ladrões em prejuízo do público em geral, de cujo bolso saiu a primeira carteira roubada antes da circulação oportunística; em prejuízo também dos agentes sérios e cumpridores de suas obrigações FRAND.

Nesses termos é que tem surgido uma reação contra os trolls e outros oportunistas titulares de patentes. Algumas decisões judiciais e mudanças nas políticas de organizações padronizadoras tem enfatizado o que - pelo menos no direito brasileiro - é mais do que óbvio. O que é óbvio?

Se você faz uma oferta pública de licença, não pode voltar atrás perante aqueles que tenha aceito incondicionalmente a oferta. Se o do titular das patentes essenciais ao padrão compromisso com as organizações é que a oferta seja justa, equânime e razoável, ela tem de chegar ao público com essas qualidades, e não como um achaque disfarçado. Assim, se a oferta pública é feita, ela tem de ser cumprida pelo titular da patentes - é o óbvio. Os europeus ainda andam sugerindo que para não haver dúvidas que a oferta seja justa, equânime e razoável, seus termos deviam se arbitrados por uma fonte neutra.

Bom, faz uns dias a IEEE emitiu sua nova política quanto às patentes essenciais a um padrão, que inclui muito enfaticamente uma proibição do tal oportunismo dos titulares das patentes.  O parâmetro sugerido pela organização padronizadora (e em princípio aceito por um comunicado de um órgão antitruste americano) não é absurdo, e não se contrapõe essencialmente ao critério publicado pela AIPPI em maio de 2014.

Algumas reações de escritórios e publicações especializadas consideram razoáveis as alterações da IEEE; eu entendo que - quanto à questão do dever dos titulares de se aterem aos termos da oferta pública - o resultado visado pela IEEE já ocorria no direito brasileiro. Aqui no Brasil, não acredito que nada mude quanto ao ponto, mesmo se outras organizações padronizadoras (além da IEEE) repetirem a dose.

Mas o povo dos oportunistas está uivando. Onde já se viu o Estado se metendo no lídimo direito de se desdizer nas promessas e de achacar o mercado? Pior ainda, onde já se viu instituições de private ordering se voltarem contra os "inovadores", que não só trazem novas tecnologias para o mercado como ainda mantém a tradição dos barões ladrões que tanto divertiam Engels?


Notas 
 (1) BARBOSA, Denis Borges, Know how e poder econômico, Universidade Gama Filho, Mestrado em Direito Empresarial, Orientador: Prof. Dr. Fabio Konder Comparato (1982), encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/concorrencia/disserta.doc. Fique claro que a colocação de uma patente como essencial a um padrão não importa necessariamente em alienação dela a um condomínio nem em administração centralizada; a simples submissão do titular da patente as regras da organização, inclusive à obrigação FRAND, já poderia perfazer a condição de acesso aos membros da organização, e a terceiros, que viabiliza a doção do padrão técnico multi-patente. 

(2) BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, A study prepared on support of the “American Academy of Sciences” study on IP Management and Standard-Setting Processes (2013), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf ; BARBOSA, Denis Borges, Patentes, padrões técnicos e Ofertas de licença FRAND em direito brasileiro  (abril de 2014), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf, visitado em 14/2/2015; http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/patentes_padros_ofertas.pdf. BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/ip_standards_brazil.pdf;  SILVA, Denise Freitas (autor),Pools de patentes: impactos no interesse público e interface com problemas de qualidade do sistema de patentes, Tese apresentada ao Corpo Docente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de DOUTOR em Ciências, em Políticas Públicas Estratégias e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Denis Borges Barbosa,  Rio de Janeiro 2012, encontrada em http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/Denise_Freitas_Silva.pdf; BARBOSA, Denis Borges, Nota sobre a aplicação da doutrina das essential facilities à Propriedade Intelectual (2005), encontrado em www.denisbarbosa.addr.com/essential.doc;  BARBOSA, Denis Borges, As alterações necessárias na legislação brasileira de propriedade intelectual para completo aproveitamento das flexibilidades de TRIPS. Estudo para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, (2010), encontrado em http://www.academia.edu/4406249/As_altera%C3%A7%C3%B5es_necess%C3%A1rias_na_legisla%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_propriedade_intelectual_para_completo_aproveitamento_das_flexibilidades_de_TRIPS._Estudo_para_a_Secretaria_de_Assuntos_Estrat%C3%A9gicos_da_Presid%C3%AAncia_da_Rep%C3%BAblica_2010_, visitado em 14/2/2015.