Thursday, July 30, 2009

Do difícil papel de acreditar num Estado de Direito

Num recente e interessante artigo de Viviane Yumy Mitsuuchi Kunisawa, encontrado em The Journal of World Intellectual Property (2009) Vol. 12, no. 4, Patenting Pharmaceutical Inventions on Second Medical Uses in Brazil, encontro o seguinte texto:

There are authors who interpret the constitutional clause as finalistic, meaning that the clause has a specific goal. In this case, the granting of each patent would be subject to the condition that the granted patents should conform to ‘‘the social interest and the technological and
economic development of the country’’ (Barbosa, 2006b, p. 13)
.

Revendo, com atenção, o trecho citado do meu artigo, não encontrei nenhum índice de ter dito que a concessão CADA PATENTE tenha de ser sujeita a uma análise de pertinência ao interesse social, etc. Não é o que penso, jamais o disse, e o enunciado se contrapõe literalmente o que digo num segundo texto meu que a autora menciona (que é o Barbosa, D. B. ‘A Proibição, pela ANVISA, de Reivindicacões de Uso Farmacêutico (2004)’, in D. B. Barbosa (ed.), Usucapião de Patentes e Outros Estudos de Propriedade Intelectual. Lumen Juris, Rio de Janeiro, pp. 715–47.:

Furthermore, the ANVISA’s policy control would be unconstitutional because patents are a fundamental guarantee and must be granted upon fulfillment of the patentability requirements set forth in the statute (Barbosa, 2006a, p. 733). The activities of the public administration are subject to the principle of legality and there should be no space for the discretionary power of the ANVISA or any other entity of the public administration. The constitutional clause would represent a justification given by the legislators to enact the patent statute. This is the legal instrument to which the public administrator (in this case represented by the ANVISA and the INPI) is attached. Therefore, once verified that the invention is new, inventive, industrially applicable, supported by the description and not a prohibited subject matter (articles 10 and 18), the patent must be granted upon payment of the applicable fees

Este entendimento, pelo que vejo, tem sido um dos mais manejados pelos autores pro e contra a intervenção da ANVISA, com aplicação dos filtros ideológicos que lhes sejam favoráveis.

Em artigo anterior mais ou menos sobre o mesmo tema (em Int. J. Intellectual Property Management, Vol. 1, Nos. 1/2, 2006), a excelente e sempre profunda Maristela Basso igualmente toca no mesmo parecer. A autora, indicando tal parecer, assim diz:

"According to the author, therefore, the intellectual property rights, once enshrined in the Federal Constitution, acquire the feature of absolute rights, opinion with which we do not agree".

Não estou aqui neste blog questionando a Viviani ou a Maristela, especialmente a última, com quem mantenho afetuosa admiração, e com quem já discuti a questão, para nossa mútua satisfação. A questão é o perigo intelectual de quem acredita que os elementos medulares da Propriedade Intelectual não é matéria de política pública do Executivo, mas sempre de uma decisão democrática popular que passa pelo voto no Congresso. Há sempre o rrisco de que a objeção pareça uma defesa dos interesses contrários à saúde pública.

Nunca me ocorreu que patente seja um direito absoluto; ao contrário, venho, nesses 29 anos que trato do tema, sempre dizendo o exato oposto; creio que não se encontraria nenhum elemento no que - pelo menos - pensei, que levasse ainda que remotamente a essa idéia.

O que disse nos pareceres é que o procedimento administrativo de patentes é vinculado; não cabe apreciação discricionária de um pedido de patentes. Uma vez configurado o estatuto legal (não constitucional) da patente, pela conciliação ponderada dos interesse constitucionais em jogo (e se isso ocorrer), não cabe juízo de conveniência e oportunidade da Administração. Direitos absolutos e procedimento administrativo vinculado são coisas - acredito - bem distantes. A concessão patente está sujeita a todos condicionantes de sua função social.

Aliás, pessoalmente escrevi, como então PG do INPI, na proposta de redação do art. 5o., XXIX da Constituição, que foi integral e minuciosamente incluida no texto em vigor, a cláusula de submissão da PI àquela sua função social.

Como literalmente afirmo nos pareceres, acredito no processo democrático, acredito em quase tudo que a Anvisa acredita, subscrevo e faço campanha pública a favor, mas .... é preciso lei! Diz o parecer:

Entenda-se bem que minha objeção se dirige precipuamente à ação discricionária da administração, caso a caso. Nesta tipo de atuação, não só se enfrenta, em nome do interesse público, a propriedade, mas também a isonomia. Dois objetos de intensa tutela no nosso sistema constitucional.

Repita-se: o Direito Constitucional Brasileiro não se opõe à proteção de nenhum campo tecnológico, nem a obriga. A Carta de 1988 não limita os campos da técnica onde se deve conceder patente pela norma ordinária, nem impõe que a proteção abranja todos os campos. Assim, é na Lei 9.279/96, e não na esfera constitucional, que se vai discutir a possibilidade e conveniência de patentear cada setor da tecnologia, obedecido sempre o balanceamento constitucional de interesses.

Quando se nega, geralmente, a patente, deixa-se de prestigiar completamente um campo de criação tecnológica, em favor de um interesse público. Mas se o faz em estrito respeito à isonomia. Não assim, o proposto – contra a Carta de 1988 – pelo artigo 229-C da Lei 9.279/96.

A lei brasileira, aplicada em sua plenitude, é a única forma de prestigiar os valores da saúde pública, ou quaisquer outros do nosso povo. Sobral Pinto, e não Antonio Virgulino, é o parâmetro da brasilidade. Para aplicar-se com segurança jurídica os mecanismos legais, como os da licença compulsória por interesse público, com a deferência internacional devida aos países de estrita legalidade, é essencial que não se ignore a Carta da República na mesma matéria.


Não acredito que haja um dever de respeitar TRIPs, como coloco no artigo que acabei de contribuir ao livro do Carlos Correa sobre o acordo, mas faço questão de respeitar o voto popular. Não quero discricionaridades de direita nem de esquerda, não posso admitir que o INPI favoreça o dono de patente estrangeiro, contra a lei (uma campanha que mantenho faz 20 anos, no tocante às formulações de remédio):

Nota sobre nulidade de muitas patentes de combinação concedidas sob o Código da Propriedade Industrial de 1971
http://denisbarbosa.addr.com/misturas.pdf

O tema desta nota é a ocorrência de nulidade em grande número de patentes versando sobre inventos relativos à química e área farmacêutica, incluindo-se também o campo dos defensivos agrícolas, concedidos sob o Código de Propriedade Industrial de 1971.

Em atuação seguramente de boa fé, mas erronea e diretamente contrária à lei, o INPI concedeu à época numerosas patentes que, na verdade, protegiam produtos químicos, farmacêuticos ou não. Algumas destas patentes subsistem como matéria judicial em discussão, e a questão resulta ainda corrente crucial.

Esta nota reitera posição doutrinária expressa pelo autor em 1988, constituindo, desta forma, posição assente a confirmada pelo exame e rediscussão do tema por mais de duas décadas.


Simplesmente, não admito que nem INPI nem ANVISA deixem de atender a liturgia do Estado Democrático de Direito. Acredito na militância da sociedade civil, na insurgência contra o pipeline, TRIPs-plus et caterva, e em que se deva denunciar as tergiversações de quem quer cargos na OMPI, em detrimento do interesse da sociedade brasileira. Mas não posso admitir que, por mais bem intencionado, o Conselho da ANVISA, ou o Presidente do INPI possam decidir o que se patenteia ou não se patenteia. Parodiando não sei quem, posso concordar até a alma com a tese, mas não admito que se viole o voto democrático para atender minha alma.

Aliás, não sou contra a participação da ANVISA na análise de patentes. Em um artigo já escrito e a ser publicado, digo:

"Assim, a partir da criação da intervenção da ANVISA, em dezembro de 1999, o exame prévio à concessão das patentes – sem que disso se excluíssem os pedidos pipeline -, passou a ser obrigatório que aquela autarquia examinasse os requisitos patentários.
Tal propósito, aliás, se configurava até mais pertinente no tocante a tais pedidos, em vista da interpretação política – não jurídica – do INPI, segundo a qual mais valeria atender aos interesses conjunturais da indústria farmacêutica do que o dever constitucional de assegurar a novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial dos pedidos, examinado mesmo os pedidos de pipeline.

De qualquer forma, a lei passou a requerer a oitiva da ANVISA, como requisito para a concessão de patentes farmacêuticas. Requisito prévio e indeclinável".

1 comment:

AGR Marcas e Patentes said...

Legal este artigo denis, muito esclarecedor a forma que voce coloca suas idéias e opiniões.