Friday, December 20, 2013

Le bœuf sur le toit et la ferme sous l'eau

Lendo um obscuro conto de George Pope Morris (The little Frenchman and his water lots), lembrei de um episódio pessoal que reflete o récit da estória: meu pai em 1957 comprou um terreno que ficava no fundo de uma lagoa. Como no conto, transtornado pela enganação, papai atravessou o oceano em fúria - mas só de Niterói para o Rio. Na praça 15, os jornaleiros berravam "os russos puseram um satélite no espaço", o que diz exatamente a data (4/10/1957). O nome do aparato era Спутник (ou sputnik), que aprendi hoje que significa "satélite", como em "sapo cururu" o cururu quer dizer, em tupi, sapo.

Mas a questão que me leva a escrever sobre terrenos sob a água é o argumento dos vendedores tanto no conto quanto na vida real: o fato de o terreno se encontrar debaixo d'água não mudaria o fato de que há terra a ser vendida.


Sempre se pode imaginar direitos de pesca, espaço para aqualung e outros propósitos para um terreno subaquático. Mas o que enfurece o comprador de um terreno assim é que lhe falta a utilidade para a qual foi concebido o negócio jurídico. Assim também uma carta patente pode ser uma bonita decoração na parede, com ouropel e fitas verdeamarelas. Mas a estrutura legal da patente não foi concebida para isso.

O assunto deste blog não é, na verdade a trapaça do corretor de imóveis, mas a do depositante de uma patente. Quem pede uma patente - como quem vende um terreno debaixo de uma lagoa - tem um limite primário no efeito sobre o mercado: se o pretenso invento não resolve nenhum problema, ele não afasta competidores, nem garante preço monopolista.

Pelo menos isso é uma explicação interessante para o fato de que os INPIs do mundo não examinam se a utilidade apontada no pedido existe ou não. Só haverá de cara  recusa por falta de utilidade se o efeito alegado do invento for muito, muito, muito inverossímil - a ponto de caracterizar o examinador do pedido como tolo ou desonesto. 

Mas o efeito técnico  do pretenso invento e o efeito concorrencial não são necessariamente o mesmo. Patentes cujo invento não é  solução técnica para coisa nenhuma podem empatar pesquisa ou repelir concorrentes que tenham soluções verdadeiras.

Desafiar uma patente de coisa nenhuma exige que se pague para ver, e pagar, bom, é pagar. Dificilmente você requer do assaltante a prova de que a munição seja de verdade e esteja no prazo de validade, antes de entregar as calças. 

Assim, é interessante perceber que, no Brasil, em casos ainda infrequentes mas muito significativos, os competidores locais estão pondo à prova a utilidade apontada como justificação da patente. Ou seja, estão indo a laboratório e testando para ver se a traquiatana efetivamente funciona.

 A utilidade, neste passo, pode estar enredada com o requisito de suficiência descritiva (o inventor tem de contar seu invento de um jeito que o pirata possa piratear sem maiores testes).  Ou seja, pode até existir, mas não foi explicada como se chega a ela. 

Pode também ocorrer que - bem e completamente explicada - a utilidade seja de fancaria. Assim, a notícia é que alguns competidores locais estão reproduzindo em condições controladas os ensinamentos da patente. Se não resolver o que diz resolver, de duas uma: ou a patente não existe por falta de utilidade, ou por falta de explicação. De qualquer maneira, só serve de enfeite na parede. Assim feito as obrigações do tesouro do território de Guaporé em moldura dourada. 

Saindo da metáfora dos terrenos subaquáticos: o sistema de patentes funciona e é lindo, mas nos países em que os competidores tem dinheiro e motivos para testar a utilidade e a suficiência descritiva da patente. Nem precisa (embora seja ótimo) que tal competidor tenha competitividade inovativa: a competitividade sistêmica (usando a propriedade industrial do jeito que ela diz que deve ser usada) já ajuda. E muito.    

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