DOS COMENTÁRIOS À LEI 9.279/96
[q] Material biológico isolado da natureza
A exclusão dos elementos isolados da natureza é peculiaridade da norma brasileira [1]. Na verdade, até mesmo segundo o critério da intervenção humana direta, o isolamento consistiria em pressuposto válido para se identificar hipótese de incidência patentária quando da matéria isolada resultado utilidade prática e técnica.
A prática brasileira tem tratado tais hipóteses como exclusão incondicional, ainda que o isolamento importe em uma solução de um problema técnico; vale dizer, como se estivesse listado no art. 18 [2].
Note-se que não existe amparo, em TRIPs, para uma exclusão categórica de isolamento de elementos encontrados na natureza, quando deste isolamento resultar uma utilidade prática e técnica. Nem se pode, na verdade, apontar razões de política pública que justificariam este afastamento do padrão internacional. O estado da evolução da biotecnologia brasileira, exatamente em face da biodiversidade, poderia talvez justificar uma proteção que, segundo a prática corrente, é denegada [3].
[1] Também na lei andina e argentina.
[2] Das diretrizes de Exame: “2.4.2 Extratos compreendem, salvo em casos muito raros, vários compostos entre ativos e não ativos, mesmo assim, uma vez que tão-somente isolados da natureza, são considerados como não invenção pelo Art. 10 (IX). 2.4.3 Compostos químicos obtidos sinteticamente que possuam correspondentes de ocorrência natural, não havendo como distingui-los destes, não são considerados como invenção de acordo com o disposto no Art. 10 (I) – se forem não biológicos – ou (IX) – se forem biológicos.”
[3] PAES DE CARVALHO, Antonio, Utilização sustentável da biodiversidade vegetal brasileira na obtenção de fármacos inovadores para a indústria farmacêutica – o modelo Extracta, sessão temática: biotecnologia, 28/05/2010: “Dificuldade em lidar com questões de propriedade industrial relativas a produtos naturais. O Código de Propriedade Industrial brasileiro de 1996, ao tentar proteger a Biodiversidade Brasileira da invasão e apropriação internacional, acabou proibindo totalmente o patenteamento de produtos inovadores derivados de seres vivos. A ação inovadora dos pesquisadores e empresas brasileiras ficou assim submetida a regras radicalmente diferentes das utilizadas na ambiência pós-TRIPS de Propriedade Intelectual. Esse problema vem sendo trabalhado no Congresso, através de PLC que tramita na Câmara, já aprovado pelas Comissões próprias, aguardando oportunidade de progresso.”, encontrado emhttp://www.redetec.org.br/publique/media/antonio_paes.pdf.
DO TRATADO
Vol. II, Cap. Vi, [ 2 ] § 3. 4. - Descobertas e inventos
Isolamento de material encontrado na natureza
A Lei 9.279/96, em seu art.10, XI veda o patenteamento de material biológico e seres vivos encontrados na natureza – ainda que dela isolados. Tratar-se-ía – em tese – de presunção de caso de descoberta [1].
Há que se notar certa tendência de eliminar, se não completamente, boa parte de tal restrição. Ver Doc. OMPI WO/INF/30-II, p. 9:
"Un producto que no haya sido divulgado al publico en forma suficiente antes de la fecha de presentación o de prioridad de la solicitud de patente en que se reivindique, pero que forma parte no separada de algún material preexistente, no se considerará que constituye un descubrimiento o que carece de novedad sólo porque forme parte no separada del material preexistente".
Comenta Correa (1989:42), antecipando a proteção do patrimônio genético introduzido pela CBD de 1992: :
"El reconocimiento de tal solución en los países en desarrollo, puede tener, como se ha señalado, enormes implicaciones sobre las posibilidades de explotar económicamente sus propios recursos".
No Direito Americano, está já razoavelmente assente que a purificação, o isolamento ou a alteração de material biológico existente na natureza [2].
Importante aspecto desse problema foi suscitado na Diretiva CE 44/98, sobre patentes biotecnológicas, como se vê na seção deste Capítulo que trata do tema.
Parece-nos que uma interpretação adequada com os propósitos constitucionais do sistema de patentes tomaria essa vedação como – mais uma vez – o índice de uma presunção de fato.
Como ocorre em todo art. 10 da Lei 9.279/96, dever-se-ía interpretar a menção ao elemento isolado da natureza como um filtro de pertinência: enquanto tal isolamento não for útil e técnico, vale dizer, enquanto não resolver tecnicamente um problema técnico, não será patenteado. Aqui – no isolamento – recusa-se a exclusiva ao simples conhecimento, mas não à solução técnica.
[1] GIPSTEIN , Richard Seth, The Isolation and Purification Exception to the General Patentability of Products of Nature by 4 Colum. Sci. & Tech. L. Rev. 2 (2003) (Published January 15, 2003), encontrado em http://www.stlr.org/html/volume4/gipsteinintro.php, vistidao em 1/9/2009.
[2] Vide Chisum e Jacobs (1992:2-23), e, numa análise do processo judicial envolvendo a Genetech e a Amgen num caso de material biológico purificado, Maher (1992:88). Vide Utility and Examination Guidelines, 66 Fed. Reg. 1092 (Jan. 5, 2001), disponíveis em http://www.uspto.gov/web/offices/com/sol/notices/utilexmguide.pdf.
DO ESTUDO DE FLEXIBILIDADES (com meu projeto de lei)
O isolamento do material encontrado na natureza
Aqui temos uma questão de muito maior complexidade. Como se viu, a Lei 9.279/96, em seu art.10, XI veda o patenteamento de material biológico e seres vivos encontrados na natureza – ainda que dela isolados.
Há que se notar certa tendência dos interesses dos titulares de direitos em eliminar, se não completamente, boa parte de tal restrição[1].
Comentava Correa [2], antecipando a proteção do patrimônio genético introduzido pela CBD de 1992 que o reconhecimento desta solução em países em desenvolvimento pode ter enormes implicações sobre a possibilidade de explorar economicamente seus próprios recursos.
Mais recentemente, o relatório do Reino Unido sobre desenvolvimento e Propriedade Intelectual nota que patentes também podem ser outorgadas no tocante a materiais biológicos com base em que teriam sido isoladas da natureza, sendo a extensão que tais práticas afetam a concorrência e aumentam os preços aos consumidores, sendo assunto de crescente debate[3].
O tratamento da questão, no entanto, é bem matizado nos sistemas nacionais [4], essencialmente levando em conta os interesses econômicos e tecnológicos em jogo. A escolha entre patentear ou não elementos que – segundo os critérios gerais de patenteabilidade - seriam suscetíveis de proteção não obstante terem origem natural não se centra só numa eventual maximização de proteção em favor dos interessados de sempre.
O estado da evolução da biotecnologia brasileira, exatamente em face da biodiversidade, pode talvez justificar uma proteção que, segundo a prática corrente, é denegada [5]. Embora se proponha a seguir um texto que implemente tal propósito, deve-se enfatizar que não se endossa tal modificação sem que, previamente, estudo específico aponte a conveniência da modificação proposta em face das políticas públicas do setor[6].
Texto a alterar
Na Lei 9.279/96:
Art. 18. Não são patenteáveis:
I – as criações industriais cuja exploração comercial deva ser excluída para proteção da moral, dos bons costumes, do meio ambiente, e da segurança, ordem ou saúde públicas;
II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.
IV - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal;
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.
No inciso I, coloca-se a redação em sintonia com o trecho de TRIPs, restringindo-se a impatenteabilidade às hipóteses em que a exploração comercial deva ser excluída, evitando-se assim a consagração, através dos sistemas de patentes, de criações industriais que a política pública entenda dever excluir da exploração. Mesmo sendo uma exclusiva, a patente não inclui o poder de usar o invento nas hipóteses em que haja razões de direito que impeçam a exploração da solução técnica na atividade econômica; mas a consagração pelo Estado, através da concessão da patente, introduz uma contradição no agir estatal, que TRIPs entende evitável [7].
A segunda alteração importa em aumentar os casos de impatenteabilidade, aproveitando-se da flexibilidade de TRIPs que permite denegar patentes às hipóteses em que a exploração da criação industrial importasse em lesão de valores relativos ao meio ambiente. Em contexto histórico onde se prestigiam as políticas de preservação ambiental, é talvez insustentável que se suprima da lei brasileira o caso de impatenteabilidade que consagra tais políticas, abstendo-se de utilizar uma hipótese de flexibilidade consagrada no direito internacional aplicável ao Brasil.
Ainda à Lei 9.279/96:
Art. 10 - Não é invenção nem modelo de utilidade: (...)
VIII – (revogado); e
IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza,ou ainda que dela isoladosinclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais. (NR)
Parágrafo único – No caso de elemento isolado da natureza através de processo técnico, que lhe confira emprego ainda não conhecido, em solução técnica dotada de atividade inventiva e aplicabilidade industrial, poderá apenas ser reivindicada tal aplicação específica, como suficientemente descrita no pedido de patente, restando todas demais em livre uso.
Reiterando-se as considerações acima, da necessidade de uma avaliação mais extensa das políticas públicas quanto ao setor biotecnológico nacional, a sugestão constante do parágrafo acrescido ao artigo 10 segue caminho singular. Uma das objeções ao patenteamento de material encontrado na natureza é a criação de um uma exclusividade nova sobre algo já existente, assim impedindo seus usos já conhecidos, com os efeitos anticompetitivos já mencionados.
Há algum tempo tem sido apontada como um problema que, enquanto a patente só tem de divulgar uma utilização específica de um gene para mostrar aplicabilidade industrial, uma vez que esse limiar seja satisfeito, o privilégio assegura o controle sobre todos os usos do gene patenteado; mesmo aqueles empregos que não tivessem sido descritos ou sequer imaginados. Isso levou alguns autores a argumentar que a proteção em tais casos deve ser limitada ao que fosse realmente revelada no pedido. Apesar da óbvia importância de tal questão, a matéria só foi resolvida no âmbito europeu em 6 de julho de 2010, com a decisão do caso Monsanto Technology LLC v Cefetra BV , tendo o tribunal declarado que a norma regional impede que as legislações nacionais venham a garantir ao titular quaisquer direitos sobre tais tecnologias além dos empregos revelados no pedido [8].
A proposta redacional acima aplica exatamente essa tática de proteção específica, visando estimular a inovação com base em produtos naturais, sem criar uma exclusividade para o emprego do elemento em usos conhecidos ou a se conhecer.
[1] Ver Doc. OMPI WO/INF/30-II, p. 9: "Un producto que no haya sido divulgado al publico en forma suficiente antes de la fecha de presentación o de prioridad de la solicitud de patente en que se reivindique, pero que forma parte no separada de algún material preexistente, no se considerará que constituye un descubrimiento o que carece de novedad sólo porque forme parte no separada del material preexistente".
[2] Correa, Carlos, “Patentes y Biotecnología. Opciones para América Latina” (1991) en IICA, Políticas de Propiedad Industrial de Inventos Biotecnológicos y uso de Germoplasma en América Latina y El Caribe. PNUD/UNESCO/ONUDI, San José, Costa Rica, p. 42.
[3] Integrating Intellectual Property Rights and Development Policy - Report of the Commission on Intellectual Property Rights, encontrado em http://www.iprsonline.org/unctadictsd/docs/RB2.5_Patents_2.5.1_update.pdf
[4] Barbosa e Grau-Kuntz, op. Cit: “As noted elsewhere in this study, an important issue in this context is the status of elements isolated from nature. According to the UNCTAD Resource Book, "An important question is whether microorganisms as found in nature should be patented under this provision. It is generally accepted that ‘to be patentable, a microorganism cannot be as it exists in nature’. However, in some jurisdictions it is sufficient to isolate a microorganism and identify a use therefore to obtain a patent. Thus, in countries that are parties to the European Patent Convention a patent may be granted when a substance found in nature can be characterized by its structure, by its process of isolation or by other criteria, if it is new in the sense that it was not previously available to the public. The European Directive on Biotechnological Inventions clarifies that “biological material which is isolated from its natural environment or processed by means of a technical process may be the subject of an invention even if it already occurred in nature” (Article 3.2). In the United States, an isolated or purified form of a natural product is patentable. The concept of ‘new’ under the novelty requirement does not mean ‘not preexisting’ but ‘novel’ in a prior art sense, so that the unknown but natural existence of a product does not preclude the product from the category of statutory subject matter. Similarly, in Japan the Enforcement Standards for Substance Patents stipulated that patents can be granted on chemical substances artificially isolated from natural materials, when the presence of the substance could not be detected without prior isolation with the aid of physical or chemical methods". UNCTAD-ICTSD. Resource Book, p. 392-393.”
[5] PAES DE CARVALHO, Antonio, Utilização sustentável da biodiversidade vegetal brasileira na obtenção de fármacos inovadores para a indústria farmacêutica – o modelo Extracta, sessão temática: biotecnologia, 28/05/2010: “Dificuldade em lidar com questões de propriedade industrial relativas a produtos naturais. O Código de Propriedade Industrial brasileiro de 1996, ao tentar proteger a Biodiversidade Brasileira da invasão e apropriação internacional, acabou proibindo totalmente o patenteamento de produtos inovadores derivados de seres vivos. A ação inovadora dos pesquisadores e empresas brasileiras ficou assim submetida a regras radicalmente diferentes das utilizadas na ambiência pós-TRIPS de Propriedade Intelectual. Esse problema vem sendo trabalhado no Congresso, através de PLC que tramita na Câmara, já aprovado pelas Comissões próprias, aguardando oportunidade de progresso.”, encontrado em http://www.redetec.org.br/publique/media/antonio_paes.pdf.
[6] O PL 2695/03 daria nova redação ao inciso IX do art. 10 da Lei n° 9.279/96 (LPI: "IX - o todo ou parte de seres vivos naturais, os materiais biológicos encontrados na natureza e os processos biológicos naturais, exceto seqüências totais ou parciais de ácido desoxirribonucléico e materiais biológicos isolados de seu entorno natural ou obtidos por meio de procedimento técnico, cujas aplicações industriais sejam comprovadas clara e suficientemente no pedido de patente."
[7] Com tal alteração volta-se ao teor normativo tradicional em nosso direito. Dizia Gama Cerqueira, referindo à legislação de 1945: “A primeira proibição refere-se a invenções de finalidades exclusivamente contrárias às leis, à moral, à saúde e à segurança pública. [Melhor se diria invenções cujo fim ou cujo objeto seja contrário, evitando-se a expressão invenções de finalidade, cujo sentido é equívoco]. Invenções contrárias à lei são somente as excluídas da proteção legal por disposição expressa da própria lei de patentes ou de outras leis. Consideram-se também contrárias à lei as invenções concernentes a indústrias cuja exploração seja proibida.”
[8] Barbosa e Grau-Kuntz, op. cit: "The Advocate General of the Court of Justice (the renamed European Court of Justice) has published the first-ever opinion on the extent of protection that European patents should give to biotech patents. This controversial opinion proposes that the full Court should give a narrow interpretation to the Biotechnology Directive, which was implemented to harmonize EU laws on the patentability of biotech inventions. Although now implemented in all Member States, there are major differences in how the Directive has been implemented. This is the first time the Court of Justice has been able to consider the scope of the protection of biotech inventions, particularly DNA sequence patents, in the ten years the Directive has been in force. This opinion is therefore significant for a number of reasons: the Advocate General recommended that traditional patent protection should not be applied to DNA sequence patents. The protection given by such DNA patents should instead be 'purpose-bound". Nabarro, UK: Biotech patents – Cutting the scope of protection, found at http://www.mondaq.com/article.asp?article_id=105008, visited on 08/14/10. In its decisions of the case (Monsanto Technology LLC v Cefetra BV and Others, C-428/08), the court accepted the Advocate General advice, stating that "2. Article 9 of the Directive effects an exhaustive harmonization of the protection it confers, with the result that it precludes the national patent legislation from offering absolute protection to the patented product as such, regardless of whether it performs its function in the material containing it.", see http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62008J0428:EN:NOT, visited on 08/14/10
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