Friday, May 16, 2003

Quem é pirata?

Nós, os profissionais da Propriedade Intelectual, temos que ter muito cuidado para não cair no espanto ingênuo quanto a pirataria; os nossos clientes têm todo direito de se inflamar, mas advogados e professores de Direito têm de conservar o olhar sereno de quem sabe que há razões e razões para a pirataria, de que em certos momentos ela pode até ser economicamente justificável, e que a condenação moral do fenômeno muitas vezes aparece entre antigos piratas, que no seu tempo foram os mais desabusados. A pirataria não é um crime universal, nem eterno, mas contingente, relativo, e estritamente jurídico. O mesmo cliente que hoje está possesso de raiva, amanhã poderá ser o pirata a quem você vai defender.

Uma coisa que se tem de ponderar muito é sobre a função social da pirataria. Ela tende a aparecer quando o retorno do investidor original é imensamente desproporcional ao investimento. Ela é claramente reprovável quando o sobrevalor sobre o suporte físico resulta do custo da obra intelectual (por exemplo, em certa extensão, nas cópias de CD...). Mas tenho muitas dúvidas quanto à função social das marcas quando se tem um produto físico, idêntico ao original, com a mesma qualidade, mas com um preço menor. Por que? Porque o sobrevalor resulta muitas vezes de mero consumo conspícuo (definido pelo Houaiss como "fruição em público de bens notoriamente caros, sugerindo a capacidade de poder pagar por tais despesas").

Não se imagine que eu concorde com a violação da marca; mas, na fixação da indenização, eu acredito que o sobrepreço relativo ao consumo conspícuo deva ser excluído da base de cálculo.

O que se tem de ter em mente é que a propriedade intelectual existe para o bem de todos, e não para garantir os interesses do titular do direito. Como disse a Suprema Corte Americana:
"this court has consistently held that the primary purpose of ou patent laws is not the creation of private fortunes for the owners of patents but is to promote the progress of science and useful arts (...)", Motion Picture Patents Co.v. Universal Film Mfg. Co., 243 U.S. 502, p. 511 (1917).

Finalmente, para quem suscita o aspecto moral da pirataria, tem que se lembrar que o pirata de ontem nomalmente é o titular de direitos de hoje. Como notei num artigo publicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior:


Por Que Somos "Piratas"?
Denis Borges Barbosa (1988)

Com o dissenso da Informática e, neste mês de julho de 1988, com as retaliações impostas pelos Estados Unidos por causa das patentes farmacêuticas, o Brasil acaba de se diplomar como "pirata" perante a opinião pública internacional. Conforme o relatório oficial do United States Trade Representative de janeiro último (Inv. 332-245), o Brasil estaria entre as dez nações que mais violam os direitos intelectuais das empresas americanas: num quarto lugar depois de Taiwan, México, Coréia, pouco antes do Canadá e do Japão, a companhia é ilustre.

No entanto, a noção de "pirataria" é bem mal empregada neste contexto. Na maior parte dos casos, o empresário brasileiro, japonês ou canadense acusado de "pirataria" não usa perna de pau, não tem olho de vidro nem muito menos cara de mau; ao contrário, cumpre fielmente as leis de seu país e age de acordo com os tratados internacionais. Muitas vezes, ele está até fazendo cumprir a política oficial de seu governo - no máximo, seria um corsário com todas as aprovações e licenças necessárias.

Por isso mesmo o governo americano tem de se valer de meios unilaterais, da sua própria Seção 301 do Tariff and Trade Act de 1984 (como fez no caso da informática e, agora nas patentes farmacêuticas), para conseguir o que a lei e os tratados lhe negam. As patentes, marcas e outros direitos que as empresas americanas dizem estar sendo violados só existem nos Estados Unidos, ou em certos outros países onde se obteve proteção específica - pois nunca houve uma "propriedade universal" sobre os produtos da inteligência. Cada país protege as criações do intelecto como sua Constituição determina e sua História lhe aconselha.

Pois as idéias foram sempre consideradas como patrimônio comum da Humanidade - e uma invenção é uma idéia posta em prática. Por muitos anos, os próprios Estados Unidos não protegiam os direitos autorais dos estrangeiros; a Suíça não reconhecia patentes a nenhum inventor; a Holanda considerava imoral conceder privilégios na indústria... Até que a massa de invenções e criações intelectuais de seus próprios nacionais tornassem mais interessante dar a proteção em termos gerais.

Há pouco tempo ainda, num famoso julgamento da Câmara dos Lordes (que funciona também como supremo Tribunal) Lorde Dennings dizia que era difícil condenar uma empresa de Uganda por "pirataria" de um segredo de indústria, quando a Inglaterra sempre se orgulhava de seus próprios piratas - do século XVI.

"- Nós tivemos aqui Sir Francis Drake", diz o acórdão de Lorde Dennings.

É esta inteligência e senso de justiça presente na Câmara dos Lordes - ao comparar o desenvolvimento de Uganda com o da Inglaterra do séc. XVI - que, é preciso tomar emprestado agora. Cada país tem direito a sua própria História.