Monday, June 07, 2010

O Papel da ANVISA e o acórdão do 2TRF de 27/4/2010.

Tenho seguidamente falado do papel da ANVISA no tocante à aplicação do 229c do Código da Propriedade Industrial. EM http://denisbarbosa.addr.com/papelanvisa.pdf, indico as razões do porquê a autarquia deve participar, como análise redundante de novidade, atividade inventiva e aplicabilidade industrial ao exame feito pelo INPI do INPI, nos casos de patentes da área sob alcance regulatório da saúde. Em http://denisbarbosa.addr.com/segundo.rtf, de outro lado, insisto que não pode a ANVISA denegar patentes, e em particular, não pode manifestar-se abstrata e genericamente recusando aprovação a reivindicações.

Em recente acórdão, de 27 de abril de 2010, na APELACAO CIVEL 417419, processo 2004.51.01.517054-0, a 2a. Turma Especializada do 2TRF, por maioria, teceu uma nova interpretação sobre a competência da ANVISA, sob o art. 229c do Código da Propriedade Industrial. Assim se lê a ementa:

E M E N T A
PROPRIEDADE INDUSTRIAL. CONCESSÃO. PATENTE FARMACÊUTICA. ANVISA. ANUÊNCIA PRÉVIA.
1. Os pedidos de patentes farmacêuticas passaram a ter sua análise obrigatória pela ANVISA desde a edição da Medida Provisória nº 2.006/1999, que criou a figura jurídica da anuência prévia, posteriormente consolidada pela Lei nº 10.196/2001, incluindo-se na Lei de Propriedade Industrial o art. 229-C.
2. As normas legais devem ser interpretadas e executadas dentro de limites que a integram ao arcabouço jurídico da nação, como um todo, e não isoladamente, conciliando-as entre si, de forma a assegurar com eficiência a realização do bem comum, sem contudo comprometer as garantias do Estado de Direito. Nesse sentido, não parece razoável ou eficiente que o legislador pretendesse que dois órgãos públicos – o INPI e a ANVISA – apreciassem concomitantemente os requisitos de patenteabilidade previstos na Lei de Propriedade Industrial, até mesmo porque estaria possibilitando a criação de situações de incompatibilidade extremas, nos casos de opiniões divergentes insuperáveis entre os órgãos, como é o caso da segunda patente. Assim, interpretar a norma com razoabilidade é entender que cabe à ANVISA, por ocasião de sua anuência prévia, dizer se há algum óbice, na área de saúde pública, à concessão da patente, isto com base no disposto na Lei n. 9.782/99 e na medida de sua competência.
3. Impõe-se o reconhecimento da constitucionalidade e auto-aplicabilidade do art. 229-C da LPI, considerando que a Carta Magna determina, no art. 5º, inciso XXIII, que a propriedade deve atender a sua função social e que a ordem econômica deve obedecer ao princípio da função social da propriedade (art. 170, inciso III), como garantia de justiça social. Nesse diapasão, evidencia-se a supremacia do bem comum sobre o direito individual da propriedade, legitimando a atuação da ANVISA na concessão de patentes farmacêuticas, desde que nos estritos limites de missão para a qual foi criada.
4. Agravo retido não conhecido e Apelação provida.

Em importante voto divergente se lê:

Divergindo dos demais membros desta turma, nego provimento à apelação da autora NOVARTIS INTERNATIONAL PHARMACEUTICAL, tendo em vista que: a) inexiste qualquer ofensa à Constituição com a exigência de anuência dessa agência para o deferimento de patente de medicamento (artigo 229-C da Lei n.º 9.279-96); b) na referida anuência, a ANVISA pode adentrar a apreciação dos requisitos de patenteabilidade (artigo 8.º da Lei n.º 9.279-96), pois atua, mediante autorização legal, de forma cooperativa com INPI nos procedimentos de patentes farmacêuticas;(...)

O elemento crucial da análise da ilustre maioria é que a ação da ANVISA não seria de redundância - tão necessária no caso das patentes farmacêuticas -, mas de simples aplicação do art. 18 do Código.Não acho que seja o caso de aplicar-se o art. 18, mas o art. 229c implicaria em análise redundante dos requisitos do art. 8o. Imaginar que a ANVISA utilize o art. 18 para aplicar sua anuência é muito perigoso. É suscitar razôes autônomas para denegar patente, com base em dispositivo peremptório, ou seja, de que não cabe relativização.

O Gama Cerqueira assim fala sobre a questão:

57. As invenções nocivas à saúde, ou de finalidades contrárias à saúde, como diz a lei,104 são as que têm por objeto, principalmente, produtos alimentícios ou medicamentos, devendo a nocividade da invenção ser apreciada em relação ao prejuízo que pode trazer para a saúde do homem, devendo-se verificar se os produtos são impróprios para a alimentação ou para usos terapêuticos, por conterem elementos prejudiciais à saúde. Proibindo o Código, entretanto, a concessão de patentes para invenções que tenham por objeto substâncias ou produtos alimentícios e medicamentos, em geral, a proibição relativa a invenções nocivas à saúde não era necessária. Além desses produtos, outros não vemos que possam incidir na proibição relativa às invenções nocivas à saúde. As invenções de máquinas, aparelhos, processos químicos e outras, que indiretamente possam pôr em risco a saúde e mesmo a vida das pessoas que as empreguem ou que estejam sujeitas aos seus efeitos ou conseqüências, não se compreendem na previsão da lei. A invenção, nesses casos, é lícita. O seu uso ou emprego é que poderá ser condicionado e regulado pelas leis. Aliás, o art. 8.º refere-se a invenções de finalidades exclusivamente contrárias à saúde, isto é, invenções que não tenham outro fim senão prejudicar a saúde...

[Ao que eu comento, na nova edição do Gama Cerqueira, que estou publicando em agosto: Mais uma vez, a redação da Lei no. 9.279/96 não corresponde ao texto analisado por Gama Cerqueira, pois exclui da patenteabilidade “o que for contrário (...) à saúde públicas;]


Segundo o Livro da UNCTAD sobre TRIPs ( UNCTAD-ICTSD. Resource Book on TRIPS and Development. New York: Cambridge University Press, 2005, p. 377 e seguintes), o nosso art. 18 só poderia ser usado (em consonância com TRIPs) para evitar patentes sobre elementos que FOSSEM PROIBIDOS DE SEREM INTRODUZIDOS NO COMÈRCIO POR SEREM ESSENCIALMENTE CONTRÀRIOS À SAÙDE PÙBLICA. Não poderia ser usado quando o monopólio, ele mesmo, fosse contrário aos interesses econômicos da saúde pública. Veja-se:

Members may exclude from patentability inventions, the prevention within their territory of the commercial exploitation of which is necessary to protect . . .

Article 27.2 is concerned with the exclusion of particular inventions, not categories of inventions which are dealt with in Article 27.3 (discussed in Chapter 21 below). It is clear from the wording of the provision that the risk must come from the commercial exploitation of the invention, not from the invention as such. It would also seem, given the wording of Article 27.2, that the likely impact must be within the territory concerned, not that of another Member. An exception based on this Article can be applied only when it is necessary to prevent the “commercial exploitation” of the invention. Therefore, the condition non-commercial uses of the invention (e.g., for scientific research). It has been debated whether the exception can only be applied when there is an actual prohibition on the commercialization of the invention, or when there is need to prevent it (even if still not done by the government concerned). According to one opinion, an effective ban should exist in order to make the exception viable.It has been held, however, that TRIPS “does not require an actual ban of the commercialization as a condition for exclusions; only the necessity of such a ban is required. In order to justify an exclusion under Article 27 (2) TRIPS, a Member state would therefore have to demonstrate that it is necessary to prevent – by whatever means – the commercial exploitation of the invention. Yet, the Member would not have to prove that under its national laws the commercialization of the invention was or is actually prohibited”.


. . . is necessary to protect ordre public or morality, . . .

Article 27.2 introduces a “necessity test” to assess whether protection of an overriding social interest is justified. Though TRIPS constitutes the lex specialis for dealing with patent issues in the WTO framework, the GATT/WTO jurisprudence on Article XX of GATT is likely to play a role in the interpretation of said Article.Article XX (a) and (b) of GATT have a similar structure to Article 27.2, and it is clear that, for the purposes of these provisions exclusions must be objectively justified. These provisions permit Members to make exceptions to the basic GATT free trade principle on the ground (a) that it is necessary to protect public morals, and (b) that it is necessary to protect human, animal or plant life [emphasis added]. Thus, under GATT, quarantine, sanitary and similar regulations must not constitute arbitrary or unjustifiable discrimination or a disguised restriction on trade. A measure is justified only if no reasonable alternative is available to a Member which is not inconsistent, or at least less inconsistent, with GATT.

Isto ao mesmo tempo reduz o papel da ANVISA sob o art. 229c a uma inutilidade, e cria a tentação de transformar o papel da autarquia em denegar patentes com base nos efeitos do monopólio sobre a economia, o que, aliás, poderia ser compatível com o art. 196 da Constituição, mas afrontaria o disposto no art. 5o., XXIX da mesma norma fundamental, além de fragilizar o texto ordinário a uma contradição com o disposto em TRIPs.