Tuesday, July 14, 2015

Non Olet: royalties para Hitler & Goebbels

Segundo a mais recente World Intellectual Property Review, os herdeiros de Joseph Goebbels acabaram de ganhar uma ação no tribunal de Munique garantindo o pagamento de royalties pelo uso das frases inolvidáveis do Ministro de Propaganda do III Reich. 

Por exemplo: "É um dos direitos absolutos do Estado presidir a formação da opinião pública" .

A Random House, ré na ação, tinha proposto reverter os royalties para um fundo das vítimas do Holocausto, mas o espólio discordou. Apesar de o autor ter morto seus seis filhos e se suicidado com a mulher em maio de 1945, sempre sobraram herdeiros sequiosos dos frutos do capital intelectual.

Na verdade, assim se mantém uma sólida tradição. Hitler se sustentava com a recepção de royalties de seu Mein Kampf, que até 1940 vendeu 6 milhões de cópias. Apesar disso representar um centésimo das vendas de Harry Potter, segundo YANNES, James A., The Encyclopedia of Third Reich Tableware, Trafford Publishing, 2013, p. 41, os royalties fizeram dele um homem milionário (ajudado pela imunidade fiscal que ele se atribuiu como um prêmio especial político).  

Mas a fé do ilustre autor na propriedade intelectual era mesmo alimentada pelos image rights que ele recebia pelo uso de sua face nos selos e cédulas alemãs. Essa é certamente uma lição valiosa para os colegas que militam no Direito do Entretenimento: a publicidade de graça só não basta, os royalties são indispensáveis.

Nos Estados Unidos, o Mein Kampf foi um best seller a partir de 1939. Começada a guerra nos Estados Unidos, o Governo Americano confiscou os royalties de Hitler e continuou a faturar incessantemente em vastos números, até que um editor recomprou os direitos em 1979. Segundo as fontes, tal editor decuplicou seu investimento na obra. 

Na Alemanha, a Bavária deteve os royalties de Hitler, muito embora a publicação fosse restrita. Segundo outras fontes, grande parte dos royalties do escritor se encontram, ainda, em bancos suíços

Com o devido perdão da citação, 
 "Without copyright protection, authors, publishers, and copiers would have inefficient incentives with regard to the timing of various decisions. Publishers, to lengthen their head start, would have a disincentive to engage in prepublication advertising and even to announce publication dates in advance, and copiers would have an incentive to install excessively speedy production lines. There would be increased incentives to create faddish, ephemeral, and otherwise transitory works because the gains from being first in the market for such works would be likely to exceed the losses from absence of copyright protection". [William Landes & Richard Posner, The Economic Structure of Intellectual Property Law (Cambridge: Harvard University Press 2003).
Mas ainda bem que havia propriedade intelectual, e a receita do autor, mesmo morto de maio de 1945 (ambos, aliás, Hiltler e Gobbels...) continuou a fruir pelos setenta anos posteriores.  As obras não se mostraram ser meramente efêmeras, de moda, ou transitórias.

Assim, uma  ilação razoável seria que, sem o sistema da Propriedade Intelectual, talvez a segunda guerra mundial e a bomba de Hiroshima não tivessem acontecido: Adolfo Hitler teria que trabalhar e não viver de royalties.

Mas minha tese é que a criação intelectual (ou pelo menos certos tipos dela) não dependa de royalties.



Friday, June 12, 2015

Fé e crédito na crise do backlog do INPI

O INPI foi criado em março de 1923, com outro nome (departamento...), e já em junho as "classes produtoras" (no caso, a Associação Comercial dessa cidade de São Sebastião) protestaram contra o backlog que se implantara. Assim, é uma tradição das mais bem conservadas em um país que pouco apego tem às tradições.

O ponto principal aqui é que a responsabilidade de eficiência é do ente público. Se ele atrasa, além do razoável, não há a desculpa de que é burocracia, como uma maldição da natureza, ou de que faltam verbas. Se faltam verbas, alguém tem de arrecadar, gerir, e empregar - ou não se cobrem retribuição dos usuários.

Contam as lendas que quando o primeiro presidente do Instituto (o nome mudou em 1970) chegou,  viu o tamanho do backlog de marcas (um fragmento do atual), e resolveu vencê-lo à maneira militar: cortando o nó górdio. Como se estivesse no convés de seu cruzador, o Comandante da autarquia indeferiu todos os pedidos de marca, em duas linhas de  Diário Oficial. Quem estivesse interessado após os anos e anos e anos de espera, recorresse. As mesmas lendas contam que deu certo.



Os tempos menos górdios não permitem a repetição da mágica. Por isso mesmo, a perpétua tentativa de jogar as consequências do atraso para o contribuinte e o consumidor.

Durante alguma das leis que tivemos, o prazo das patentes começava a correr depois da concessão, e a duração total só Deus sabia; depois alguém achou que não cabe ao comprador da ratoeira patenteada pagar o sobrepreço por mais de 40 anos só por causa da licença prêmio do examinador do então DNPI. Em 1971 o prazo da patente começava a correr a partir do depósito, e se a coisa atrasasse demais, a solução era o precatório contra o ente público.

Em 1996, inventou-se uma solução mediada. Se o INPI durasse até dez anos no exame das patentes o depositante ficava com os benefícios do papelucho pelo tempo que faltava - mas podendo reaver dos infratores toda a indenização pelo tempo passado antes da concessão. Se o INPI demorasse mais de dez anos, a patente ia esticando, até garantir os dez anos de papelucho ao depositante. O papelucho é importante para decorar a parede das instalações fabris. (Quanto à repercussão do papelucho na exclusividade real de mercado do depositante, vide aqui).

Diz o ditado que in medium virtu, mas na mediação também pode haver pecados hediondos,e essa solução é prova disso. Mas chega a um ponto que nem os beneficiários da prorrogação pelo atraso estão completamente satisfeitos, e o público que paga pelo atraso na forma de uma exclusividade acrocéfala começa a se insurgir. Ainda agora, um protesto do Clube de Engenharia, encaminhado à Presidenta do Repúblico pede intervenção imediata no INPI, sem esclarecer se militar, civil, ou de um exorcista.

Em conversa hoje com uma ilustre colega, sobre esse assunto e o da presente acefalia do INPI (pois a acefalia e a acrocefalia estão estreitamente ligadas)  tive ocasião de falar sobre uma possível solução para a crise atual. O momento é de paroxismo, e não de planos de longo prazo.

Na pesquisa do PPED/IE/UFRJ sobre os escritórios de patente do Brasil, Peru e México, de que são autoras Ana Célia Castro e Ana Maria Pacón, entre outros, constata-se que o padrão real no México é que se dê fé e crédito ao exame da EPO, tido como íntegro e técnico, e só se examinem mesmo as patentes locais e as do andar de cima, tidas por cambetas e trôpegas. Parece que isso acontece sem ofender o devido processo legal de ninguém, e dando conta das diferenças do sistema legal mexicano.

Sem que ninguém me suspeite de querer abolir a seriedade de um exame nacional e os orgulhos de ser autoridade internacional do PCT (o que, aliás, está sofrendo do backlog, e de uma forma dolorosíssima para os crédulos que escolheram essa via) fique bem claro o que sugiro. A proposta é de um plano de ataque, não vou dizer provisório, porque a estação de bondes de Santa Teresa é provisória desde 1957. Mas limitada e ad hoc. Ressalva-se sempre as idiossincrasias do nosso sistema jurídico, e os subsídios e PANs de todo mundo.

Mas listem-se as instituições que mereçam fé e crédito para cada área. Realisticamente. Até o USPTO pode eventualmente merecer respeito em certas áreas. O livre e ilimitado acesso aos processos de origem - se houver -  garante o devido processo legal (não me venham falar de tradução, que isso em PI é pretexto e não coisa de gente séria). Neste âmbito e só neste, institua-se o exame filtrado: usa-se mediante menção direta do processo de origem a busca e o exame, e aplique-se o filtro: subsídios e peculiaridades da nossa lei. Os eventuais acordos internacionais bilaterais ou plurilaterais podem detalhar mais o procedimento, sempre tutelada a soberania e garantido o devido processo legal.

A regra sugerida é garantir a paridade em duas linhas de montagem simultâneas.  Para cada patente decidida sob exame filtrado seria decidida simultaneamente uma nacional (PI ou MU...). Como se faz na CLT quanto a paridade de empregados estrangeiros e nacionais (... também por estabelecimento...), computa-se RPI a RPI.  Ambas linhas de montagem examinadas paritariamente de forma a garantir a regra do tratamento nacional. Quando acabasse o estoque local do exercício pertinente, a paridade se esvairia.

Será que vai fazer diferença? Nenhuma, se alguém  tiver outra ideia mais prática. Mais concursos e mais vencimentos é a maneira kosher de resolver a questão. É a que eu prefiro.



Thursday, April 30, 2015

Indicação Geográfica: diversidade cultural ou padronização fordista?

Ligia Inhan é doutoranda no PPED/Instituto de Economia da UFRJ, com um projeto de pesquisa sobre Conhecimento tácito e instituições em indicações de procedência do queijo minas artesanal. Mas o que interessa muito nessa pesquisa é o conceito operativo do que seja uma indicação geográfica no sistema legal e institucional brasileiro. 
O que em outros sistemas surge como a manifestação econômica de diversidade cultural e geográfica entrou no nosso sistema como um instrumento de desenvolvimento econômico. Desenvolvimento dentro de uma noção de ótimo racional e padronizador. Vejam a carta que ela circulou hoje falando do papel do MAPA quanto às IGs, dos esforços da ABNT em criar uma norma de diversidade  e outros paradoxos da institucionalização desta modalidade de Propriedade Intelectual: 
"Estamos aumentando a burocracia das IGs e nada tem-se feito para modificar a metodologia de fiscalização do MAPA. Claro que no papel tem muita coisa. O mais impressionante de tudo é que acreditam que estão fazendo alguma coisa muito importante, mas que de fato só está no papel.
O pior da burocracia é quando acreditamos que ela substitui os atos constitutivos.
Há no MAPA um setor inteiro para cuidar do desenvolvimento regional, que aí engloba as IGs, no entanto, pouco ou nada andou no sentido de desenvolver alguma forma de entender o que é uma região caracterizada como IG. Fácil ver no papel a estrutura do órgão, seus objetivos e finalidades e a lei de IG é muito simples. Mas o que é a proteção? O que envolve uma instituição proteger um local formalmente? No entendimento do MAPA e do SEBRAE eles só se protegem SE E SOMENTE SE, eles entram no alinhamento do mercado. De um lado está o SEBRAE que entende tudo como empreendimento e se o rendimento do produtor vira lucro aí está tudo bem. A partir daí o MAPA entra para fiscalizar o que está no mercado. Nada mais lógico e natural, afinal, o pequeno produtor virou uma indústria como qualquer outra e tem que se enquadrar.

A lógica é essa.

No faz de conta que "eu protejo seu conhecimento" está inerente a transformação desse conhecimento para a economia de mercado, onde há concorrência, (que é muito natural que o seu vizinho queira utilizar meios escusos para usurpar seus clientes, ou qq outra coisa que faça vc se sentir rico e poderoso), há deslealdade, há desunião. E ainda reclamam que os produtores não são unidos e não participam das associações...
O MAPA está enrijecido com uma burocracia fiscalizadora, formalizada na lei de 1952 e não há lei de proteção que consiga romper essa rigidez. O discurso chega a ser comovedor, porque eles percebem que há rigidez. Mas, quando eu disse sobre a necessidade de se buscar entender os processos sociais que estão dentro da região e que imprimem sua característica única, eles entenderam que eu fosse contra a fiscalização. E quando eu questionei ao SEBRAE que eles deveriam buscar o IPHAN para juntamente fazer um trabalho de entendimento sobre como eles se sustentavam até então e melhorar essas condições antes de aplicar o "manual do empreendedor", eles me disseram que os produtores não os ouvem se não falar de quanto eles vão ganhar a mais...
No Brasil há ainda regiões no período mercantil, pré-capitalista, e muito em função disso, com potencial de IG, mas se as instituições continuarem aferradas em seus próprios caminhos, pouco irá restar além de um certificado de IG. Mas é papel, então deve valer alguma coisa".

Thursday, April 09, 2015

Certificado de Registro de Programa de Computador (em especial) tem a natureza jurídica de TÍTULO de Propriedade Intelectual?



Meu caro Renato,

Uma pergunta em abstrato, assim, é irrespondível. A Lei 9.279/96 usa a expressão “título” em um grande número de acepções divergentes. Título como o nome que um livro tem na capa, ou o jornal no seu topo; o breve resumo da matéria de uma patente;  o nome de um estabelecimento comercial; a noção de “causa de direito”, quando fala “a qualquer título”; etc.  A Lei mais genérica, de registros públicos, menciona “títulos e documentos”, prescrevendo  que o órgão registral levará tais títulos (e documentos...) em conta para fins diversos. Distinguem-se nessa lei os usos da expressão “título “ tanto como causa jurídica e quanto como testemunho documental, mas sem muita precisão.

Vejamos, de outro lado, o Código Civil: “Art.1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (Código Civil Brasileiro de 2002)”. Se tem então o registro (que transfere o direito real) do título, aqui entendido como um causa jurídica de cunho documental, que é precedente ao registro. Mas há momentos em que o “titulo” se desnuda em causa jurídica, sem qualquer exigência de testemunho documental: Art. 1.201. (...) Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. (Código Civil Brasileiro de 2002).

Mas indo ao caso específico, nem as leis de PI, nem a lei registral geral, definem, o que é “título de propriedade industrial”.  

Então, a resposta direta à sua pergunta é: depende do que você quer dizer falando de “título de propriedade industrial”? É para que propósito? Documento interno do NIT? Contrato? Contagem estatística?

Mas uma coisa pode ser dita de início. Nem a carta patente, nem o certificado de registro de marcas, é um “título” autônomo e literal, pelo menos no sentido de um direito cartular contido  no papel em que ele se descreve. Há sim, títulos cartulares, como explica o comercialista Fábio Ulhoa:
 Cartularidade "é a garantia de que o sujeito que postula a satisfação do direito é mesmo o seu titular, sendo, desse modo, o postulado que evita o enriquecimento indevido de quem tenha sido credor de um título de crédito ou negociou com terceiros (descontou num banco , por exemplo )".
Tal documento é chamado de título de crédito porque cumpre os requisitos estabelecidos em lei, se assim não o for, não se tratara de título de crédito. Não existe credor sem a posse efetiva do título neste caso, mesmo que a pessoa possua os direitos creditícios, este não poderá recorrer em juízo para exigir seu cumprimento.
Assim, sem o título de crédito – fisicamente, na sua mão – não há como exercer seus direitos de credor. Não se vai buscar a causa jurídica fora do documento, pois ele é também autônomo e literal.  Mas isso não é a regra geral em direito. Na verdade, esses são casos singularíssimos.
Quando você nasce com vida, o fato do seu nascimento constitui seu ingresso no mundo do direito, independentemente da certidão. É a vida, e não o papel, que faz eclodir as consequências jurídicas. Você pode ter algumas restrições pragmáticas ou de meio de prova pela falta da certidão de nascimento, mas em nada isso abala a criação do direito pelo nascimento com vida. No caso dos direitos que dependem de declaração e constituição por um ato estatal, como o de patentes, há um ato de estado, ou ato administrativo, que deflagra os direitos pertinentes; aliás, a emissão do documento que atesta o ato estatal não é o que deflagra esse direito, mas a publicação do ato na RPI. Com ou sem a carta patente, existe a patente e pode se exercida, em virtude da publicação que dá ciência do ato estatal de concessão.

Bom, então se tem títulos cartulares, e documentos que apontam para o título, mas nele não se contém o título (a vida e não a certidão de nascimento; a concessão da patente pela publicação na RPI, e não pela entrega da carta patente). O título (a patente, o registro, etc.) não está contido no papel.

Qual o papel da carta patente, então? É um instrumento informacional, no qual se reúnem os dados básicos, e se facilitam os negócios jurídicos. Mas vezes sem conta fui réu em ações em que o titular da patente não tinha carta patente, e o processo prosseguia sem a exibir. Na verdade, creio que isso não deveria ser admissível, pois o réu necessitaria ter exata informação do direito que se lhe antepõe, o que não é sempre fácil sem a versão final da patente como deferida – e o INPI não tem cópia guardada das cartas patentes.

Assim, se parece possível definir como “titulo de propriedade industrial” a patente, o registro, etc., o mesmo não se dirá da carta patente, dos certificados de registro, etc. Quando você olha para os dispositivos legais pertinentes, isso se vê:
Art. 38. A patente será concedida depois de deferido o pedido, e comprovado o pagamento da retribuição correspondente, expedindo-se a respectiva carta-patente. (...)    § 3º Reputa-se concedida a patente na data de publicação do respectivo ato. Art. 39. Da carta-patente deverão constar o número, o título e a natureza respectivos, o nome do inventor, observado o disposto no § 4º do art. 6º, a qualificação e o domicílio do titular, o prazo de vigência, o relatório descritivo, as reivindicações e os desenhos, bem como os dados relativos à prioridade.
Aqui vem mais uma distinção: há direitos que nascem de um ato estatal que declara seus pressupostos e constitui a exclusividade, e há outros direitos que nascem independentemente da ação estatal. Nascem da simples criação da obra. Tal acontece com as obras autorais e, por assimilação, o software. Assim, a patente, o registro de marcas, de topografias, de cultivares, de desenho industrial, todos esses nascem de um ato estatal. Mas a obra autoral, nela incluída o software, independem em sua proteção de qualquer ato estatal. 

O Certificado de registro de software no INPI tem a mesma importância jurídica de uma fotografia que você tira de um bebê novo: ela serve para por no facebook e mostrar para os amigos, mas não tem nenhuma, nem a mais remota das repercussões em direito. A não ser comprovar que você pediu registro (tirou foto com iphone). As pessoas usam o registro de software basicamente para impressionar burocratas, compradores e namoradas,  partindo do princípio de que esses não tenham realmente ideia do que é um registro de software; e – numa hipotética discussão judicial – como prova de que, na data em que pediu o registro, o software existia mais ou menos do jeito que foi depositado.

Assim, se neste caso específico você definir “título” como a causa jurídica do direito de exclusiva, o título resulta do ato de criação, e de nenhum ato estatal.  


Mas – sempre – título é qualquer coisa, dependendo de definição contextual. Os meus “títulos de propriedade industrial” são os livros que escrevi que tratam da questão, e não os meus romances, novelas e contos. 

Tuesday, April 07, 2015

Integridade, domínio público e o Pequeno Príncipe.

Toda a humanidade em rede sabe que as obras de Antoine Saint Éxupery entraram no domínio do público brasileiro no primeiro dia de 2015. Saíram assim do patrimônio dos sucessores do autor francês e se integraram no domínio inclusivo dos beneficiários da lei autoral brasileira. Como as praças públicas, e muitos elementos desse patrimônio comum, as obras de Saint Éxupery entraram na posse de cada um de nós, e passaram a ser suscetíveis de defesa desse exercício comum - inclusive por possessória - por cada um de nós.

Agora vem um tema engraçado. O que cai no domínio do público no Brasil são os direitos patrimoniais. Persistem alguns dos direitos pessoais, ditos morais, como o de integridade da obra.

Esse direito específico tem a seguinte

Art. 24. São direitos morais do autor: (...) 

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra.

Assim, se tem uma norma complexa: o titular desse direito pessoal pode opor-se a quaisquer modificações da obra, desde que possam prejudicar ou atingir o autor em sua honra ou reputação. Somam-se duas coisas para se ter o direito pessoal: violação da obra como concebida e mais lesão ao valor honra ou reputação

É preciso ficar bem claro que se tem uma tutela aqui de interesses pessoais. Não se trata da defesa da cultura, que resvala num tombamento ou outra medida de resguardo comparável, mas não se volta à honra ou a reputação do autor, pessoalmente. O autor pode odiar a sua obra com as veras d' alma e rezar para que a destruam; pode arrepender-se de jamais a ter concebido; mas o interesse pública na preservação da obra íntegra se oporia a isso. 

Pois existe o direito à integridade da obra como testemunho do processo cultural, numa permanência que se impõe pelos interesses ao acesso à cultura e outros valores; e existe a tutela da honra e reputação do autor, o que é coisa diversa. O exemplo do TJRS, AC  70018223735/2006, Décima Câmara Cível Rel. Des. Paulo Antônio Kretzamm, 29 de março de 2007 é ótimo para provar esse ponto: o tribunal gaúcho reconheceu que um livro de gramática cheio de erros introduzidos pelo editor abalava a reputação do gramático autor. Ou pelo menos diluia seu fundo de comércio....

Esta integridade que se defende no art. 14, IV da LDA é a que tutela a honra ou reputação do autor. Assim há distintos interesses jurídicos na integridade de uma obra, que não necessariamente se alinham.  

A questão se torna ainda mais enevoada quando se notam certos autores que afirmarem  que, uma vez os direitos patrimoniais caiam no domínio do público, esse poder de resguardar a honra e a reputação do autor passaria para o estado ou o Ministério Público (por exemplo, Rodrigo Moraes). A meu ver o estado não se sucede nesse direito pessoal, mas assume o direito de tutela da cultura, quando e se a obra exerce esse testemunho.  

Mas reviendrons à nos moutons. A questão de Saint Éxupery (que tem jiboia e raposa mas não necessariamente carneiros) é a edição desse livrinho que se vê na ilustração, do qual (está na capa) as aquarelas também são do autor.  Será que outros editores, com amparo no domínio do público, podem lançar edições com outra diagramação, diversa da original, sem ofensa ao art. 29? Afinal, caiu em domínio comum....

Parece que não. A diagramação original, que deve ser complicada senão os novos editores não a estariam rifando nas publicações 2015, parece ser parte da concepção original. Digo "parece" porque há sim uma alteração esteticamente relevante se você abandona a diagramação feita pelo Saint Éxupery. Se tal modificação invade a honra e reputação do aviador morto são outros quinhentos. Mas há sim violação à integridade da obra como concebida. A diagramação não era uma conveniência, mas elemento do processo criativo. 

Pois é o que conta a biografia do autor, escrita por Stacy Schiff (que ganhou o Pulitzer ainda que não com esse livro)  e publicada pela Da Capo Press (1996). Lá pela p. 389, o biógrafo narra:
"He continued through the early part of the winter, to fiddle with his illustrations for The Little Prince and to agonize over their proper placement in the text"
 O autor sofria agonicamente com a diagramação. Não sei se isso põe em questão honra ou reputação, mas certamente merece tutela de direitos pessoais.












Friday, February 27, 2015

Muda a Constituição para falar de inovação. Precisava mesmo?

Com a Emenda Constitucional no. 85, a Constituição, que não falava em inovação, agora fala. E os capítulos do meu Tratado e do Direito de Inovação em que se discutia o estatuto constitucional da ciência e da tecnologia perderam a validade. Antes que o Procon interdite meus livros por vender comida fora da validade, vamos nos apressar em constatar as mudanças.

Em primeiro lugar, a maior parte das alterações não chega a ser sequer cosmética. "Inovação" ganha a cintilância constitucional e passa a ser uma das virtudes cardinais de Platão, ao lado da prudência, da moderação, da fortaleza  e da justiça. O quadro comparativo abaixo indica onde a expressão inspirada em São Schumpeter passa a integrar o catecismo.

Bom, o que quer dizer "inovação", então? Se não é ciência nem tecnologia, nem o resultado delas, e para não imaginarmos que o Congresso gastou tempo fazendo coisa alguma com o dinheiro dos contribuintes, temos que concluir que agora a inovação não tecnológica ganhou foros augustos.  Vamos ter dinheiro público para inovações de marketing, de publicidade, de métodos de negócio....

Além disso, vejamos as alterações: 
  1. A Emenda explicita que a tecnologia e a inovação está agora na competência concorrente legislativa  e de poderes da União, dos Estados e dos Municípios a tecnologia e a inovação. O Art. 218 já dizia que promover a ciência e a tecnologia não só estava na competência, mas no âmbito dos deveres constitucionais desses entes todos. A mudança evidencia o que já era óbvio. Espero que não tenha custado muito de dinheiro público. 
  2. Numa alteração que pode ter alguma importância para a orçamentação das atividades de CT&I, o art. 167 foi alterado para que a "transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra (...) no âmbito das atividades de ciência, tecnologia e inovação" deixem de ter como condição a aprovação do Legislativo. 
  3. O art. 213, que se volta ao financiamento público de instituições de ensino, aumenta o rol das atividades de universidades e ICTs privadas que podem ser apoiadas, acrescendo às  atividades de pesquisa e extensão as de estímulo e fomento à inovação, e também somando como beneficiárias as instituições de educação profissional e tecnológica.
  4. No art. 218 § 3º, a emenda acrescentou  "apoio às atividades de extensão tecnológica" entre as atividades de recursos humanos a serem estimuladas.
  5. No § 6º do art. 218, a emenda determina que os entes estatais se articulem para os fins de CT&I. (Evidentemente seria preciso mudar a Constituição para se implantar uma ideia tão instigante e ... inovadora).
  6. No  § 7º  a emenda incentiva que as instituições de CT&I tenham atuação no exterior. (O relator dessa emenda deve estar depositando patente de invenção no INPI para essa iniciativa revolucionária). 
  7. O art. 219 ganha um parágrafo único para acrescer à missão estatal de CT&I as atividades inéditas e surpreendentes de "parques e polos tecnológicos e  demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia".  Sem tal alteração constitucional, tais atividades jamais poderiam ter sido incluídas na Lei de Inovação, e se já o foram, seguramente a inclusão era inconstitucional e írrita ao direito pátrio. 
  8. Cria-se um art. 219-A para se dar estatuto constitucional ao que já estava no art., 19 da Lei de Inovação
  9. Pelo art. 219-B institui-se, a nível constitucional, o  Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI),  que já descrevia a complexa rede de normas e instituições dos vários entes  federativos sob o dever geral de estímulo de ciência e tecnologia que desde 1988 resulta do art. 218 da Constituição. A diferença é que se prevê uma lei nacional para regulamentar o sistema. 
Não mencionamos até agora a modificação textual que, a nosso ver, representa a maior alteração no desenho constitucional das atividades de ciência e tecnologia. Sob a redação anterior, que era
§ 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.
assim dissemos em nosso Direito da Inovação 2a. Edição, Lumen Juris (2010):
A ciência e o domínio público
A primeira questão que o artigo 218 aponta é a vocação da ciência ao domínio público.
A pesquisa científica caracterizada como básica, ou seja, não aplicada a soluções de problemas técnicos específicos, voltada à atividade econômica, receberá tratamento prioritário do Estado. Essa prioridade é relativa em face à pesquisa de capacitação tecnológica, fato que, no caso da ciência, o Estado é presumivelmente a principal fonte de incentivo e de promoção.
A atividade estatal terá como proposta o bem público e o progresso da ciência. Na repartição dos encargos da produção de conhecimento, a pesquisa básica não é apropriada, em princípio não é apropriável, nem pelos agentes privados da economia e nem pelos estágios nacionais. Esse conhecimento, em princípio, é produzido para a sociedade humana como um todo, para o bem público em geral. É o que a Constituição diz.
O elemento final da mesma cláusula refere-se o progresso em ciências e reitera assim a natureza da destinação dessa atividade estatal ao domínio público, indiferenciado e global. Nota-se que no artigo 200 da Constituição, inciso X, existe mais um dever do Estado, que é específico, sobre pesquisa no setor de saúde. 
A nova redação não terá o mesmo entendimento. Vejamos:
§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.
Com efeito, já não há mais a cesura textual entre a atividade prioritária do Estado (a ciência básica) e a tecnologia, que merece todo o parágrafo segundo. A prioridade vai agora para as duas modalidades (curiosamente, quando tanto se alterou para isso, não para a inovação...). E a expressão "o progresso das ciências" (que existe, idêntica, na Constituição Americana)  para a ser o "progresso da ciência, tecnologia e inovação".

Assim, não se consagra mais na Constituição que a Ciência básica financiada pelo estado destina-se ao domínio público,e a tecnologia à apropriação. É uma vitória dos patrimonialistas: mantido em sigilo, resguardado, o saber científico agora pode (o que não significa que deva ou seja em todos casos) excluído do domínio comum.

Mas, pelo § 2º  do art. 218, continua o dever estatal de apropria-se da tecnologia gerada com fundos provindos do contribuinte.

Quadro comparativo





Monday, February 16, 2015

Patentes essenciais a um padrão: a alteração da política do IEEE.

A questão de pools de patente - a junção de várias patentes de titulares diversos sob algum tipo de administração conjunta - é coisa antiga em Propriedade Intelectual. Na dissertação do meu primeiro mestrado, em 1982, dizia-se o seguinte:
O "pooling" de patentes não é, por si dó, uma prática abusiva; é, no entanto, uma das maneiras mais eficazes de controle de um mercado, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"(1).
Mais recentemente, como a questão das patentes essenciais a um padrão técnico (como DVD, ou USB) se tornou um dos temas mais importantes do momento,  tive a oportunidade de escrever e orientar academicamente sobre a matéria, e dar até agora dois pareceres (2).

O tema surge quando múltiplos agentes econômicos pactuam um determinado padrão técnico, com tecnologias subjacentes que se encontram no escopo de múltiplos titulares. A adoção de um desses padrões por uma organização especializada (como a IEEE, que é algo análogo à nossa ABNT, ou outra) ou por um arranjo ad hoc (aí, sim, um patent pool clássico) vai presumir que as patentes sejam colocadas num commons (ou espaço de uso comum) fechado aos membros que contribuem com patentes.

Mas a criação de um padrão, se o commons é fechado aos contribuintes de patentes essenciais, estabeleceria um enorme poder para os que estão dentro, e uma colossal exclusão para os que estão fora. Ocorreria a hipótese de que eu falava em 1982, quando os participantes do "pool" se voltam contra um "outsider"...

Assim, os órgãos antitruste ou - eventualmente -  o bom senso das organizações padronizadoras impõem àqueles que querem colocar patentes como essenciais num padrão que se comprometam a ofertar licenças a terceiros indiscriminados - qualquer um, na verdade - em condições justas, equânimes e razoáveis (daí o acrônimo RAND ou FRAND), que qualifica essas ofertas de licenças.

http://www.ftc.gov/sites/default/files/attachments/press-releases/google-agrees-change-its-business-practices-resolve-ftc-competition-concerns-markets-devices-smart/google-patents.jpg
Tudo bem então: os padrões aproveitam à economia de redes e ao público em geral, e não só os que contribuem patentes, mas todos agentes econômicos passam a ter acesso à tecnologia padronizada. O melhor dos mundos para todo mundo.

É aí que vem o comportamento oportunístico para solar o bolo.

De um lado, daqueles terceiros que querem a facilidade sem pagar os royalties das licenças ofertadas, nem cumprir com suas condições. Pois as licenças FRAND podem ser gratuitas, ou não. Desde que justas, equânimes e razoáveis, elas podem ser pagas, em princípio sem infração das regras.

De outro, dos titulares de patentes que, beneficiários da inclusão de sua exclusiva num padrão de mercado - o que torna a patente inevitável mesmo se houver alternativas tecnológicas - que se valem de sua posição de poder para escorchar terceiros.

Assim é que, faz algum tempo, titulares de patentes (ou os famigerados trolls, que adquirem patentes que não criaram, ou o direito de as usar em ações judiciais) têm utilizado patentes essenciais para falsear as condições ótimas de um padrão sob oferta FRAND; e múltiplos agentes econômicos vão empurrando com a barriga suas obrigações para com os titulares. Ladrões que roubam ladrões em prejuízo do público em geral, de cujo bolso saiu a primeira carteira roubada antes da circulação oportunística; em prejuízo também dos agentes sérios e cumpridores de suas obrigações FRAND.

Nesses termos é que tem surgido uma reação contra os trolls e outros oportunistas titulares de patentes. Algumas decisões judiciais e mudanças nas políticas de organizações padronizadoras tem enfatizado o que - pelo menos no direito brasileiro - é mais do que óbvio. O que é óbvio?

Se você faz uma oferta pública de licença, não pode voltar atrás perante aqueles que tenha aceito incondicionalmente a oferta. Se o do titular das patentes essenciais ao padrão compromisso com as organizações é que a oferta seja justa, equânime e razoável, ela tem de chegar ao público com essas qualidades, e não como um achaque disfarçado. Assim, se a oferta pública é feita, ela tem de ser cumprida pelo titular da patentes - é o óbvio. Os europeus ainda andam sugerindo que para não haver dúvidas que a oferta seja justa, equânime e razoável, seus termos deviam se arbitrados por uma fonte neutra.

Bom, faz uns dias a IEEE emitiu sua nova política quanto às patentes essenciais a um padrão, que inclui muito enfaticamente uma proibição do tal oportunismo dos titulares das patentes.  O parâmetro sugerido pela organização padronizadora (e em princípio aceito por um comunicado de um órgão antitruste americano) não é absurdo, e não se contrapõe essencialmente ao critério publicado pela AIPPI em maio de 2014.

Algumas reações de escritórios e publicações especializadas consideram razoáveis as alterações da IEEE; eu entendo que - quanto à questão do dever dos titulares de se aterem aos termos da oferta pública - o resultado visado pela IEEE já ocorria no direito brasileiro. Aqui no Brasil, não acredito que nada mude quanto ao ponto, mesmo se outras organizações padronizadoras (além da IEEE) repetirem a dose.

Mas o povo dos oportunistas está uivando. Onde já se viu o Estado se metendo no lídimo direito de se desdizer nas promessas e de achacar o mercado? Pior ainda, onde já se viu instituições de private ordering se voltarem contra os "inovadores", que não só trazem novas tecnologias para o mercado como ainda mantém a tradição dos barões ladrões que tanto divertiam Engels?


Notas 
 (1) BARBOSA, Denis Borges, Know how e poder econômico, Universidade Gama Filho, Mestrado em Direito Empresarial, Orientador: Prof. Dr. Fabio Konder Comparato (1982), encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/concorrencia/disserta.doc. Fique claro que a colocação de uma patente como essencial a um padrão não importa necessariamente em alienação dela a um condomínio nem em administração centralizada; a simples submissão do titular da patente as regras da organização, inclusive à obrigação FRAND, já poderia perfazer a condição de acesso aos membros da organização, e a terceiros, que viabiliza a doção do padrão técnico multi-patente. 

(2) BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, A study prepared on support of the “American Academy of Sciences” study on IP Management and Standard-Setting Processes (2013), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf ; BARBOSA, Denis Borges, Patentes, padrões técnicos e Ofertas de licença FRAND em direito brasileiro  (abril de 2014), encontrado em http://sites.nationalacademies.org/cs/groups/pgasite/documents/webpage/pga_072297.pdf, visitado em 14/2/2015; http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/patentes_padros_ofertas.pdf. BARBOSA, Denis Borges, Intellectual Property and Standards in Brazil, encontrado em http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/ip_standards_brazil.pdf;  SILVA, Denise Freitas (autor),Pools de patentes: impactos no interesse público e interface com problemas de qualidade do sistema de patentes, Tese apresentada ao Corpo Docente do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de DOUTOR em Ciências, em Políticas Públicas Estratégias e Desenvolvimento. Orientador: Prof. Dr. Denis Borges Barbosa,  Rio de Janeiro 2012, encontrada em http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/Denise_Freitas_Silva.pdf; BARBOSA, Denis Borges, Nota sobre a aplicação da doutrina das essential facilities à Propriedade Intelectual (2005), encontrado em www.denisbarbosa.addr.com/essential.doc;  BARBOSA, Denis Borges, As alterações necessárias na legislação brasileira de propriedade intelectual para completo aproveitamento das flexibilidades de TRIPS. Estudo para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, (2010), encontrado em http://www.academia.edu/4406249/As_altera%C3%A7%C3%B5es_necess%C3%A1rias_na_legisla%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_propriedade_intelectual_para_completo_aproveitamento_das_flexibilidades_de_TRIPS._Estudo_para_a_Secretaria_de_Assuntos_Estrat%C3%A9gicos_da_Presid%C3%AAncia_da_Rep%C3%BAblica_2010_, visitado em 14/2/2015. 

Wednesday, November 12, 2014

Dez anos da lei de inovação: entrevista ao NIT Mantiqueira (junho 2014)

Entrevista

NIT Mantiqueira: Como o senhor vê a posição do Brasil no ranking mundial de Inovação? O atual processo de inovação do país estaria em consonância com os dos demais países em desenvolvimento?

Denis Borges Barbosa: Após quase dez anos de Lei de Inovação, começam a aparecer índices do seu impacto: índices nominais, ainda. Número de patentes solicitadas é um índice nominal, e esse está claramente crescendo. A substância da inovação subjacente não se revela em depósitos de patente, como o número de peladas em várzea não indica quem vai ganhar a próxima Copa. Quanto ao ranking mundial, entendo que ele tende a comparar bananas e laranjas: inovação é essencialmente um processo cultural de efeitos econômicos, e inovação na China não é exatamente comparável com inovação em outros contextos. Voltando à questão dos depósitos de patentes: certos economistas chineses apontam que a enorme quantidade de depósitos locais representam contrapartida para incentivos fiscais e creditícios a depósito, sem que se estimule exatamente a contribuição inovadora substantiva. Creio que quantificação de um processo medularmente qualitativo tem como principal efeito o do efeito político de aparentar controle preênsil sobre o movimento das nuvens e assim apoderar os pajés.

NIT Mantiqueira: Qual sua participação na elaboração da atual Lei de Inovação?

Denis Borges Barbosa: A lei de Inovação atual é fruto de uma elaboração orgânica dos pesquisadores e gestores de conhecimento em nossas instituições públicas, e disso resulta sua legitimidade e seus problemas. Como consultores do MCTI, na época da regulamentação da Lei, tivemos ocasião de elaborar a proposta da norma que veio a se transformar na Lei do Bem (com grandes alterações introduzidas pela Receita), e participar de uma série de discussões que resultaram nos regulamentos da norma legal. Essa participação não se interrompeu desde então, formal e informalmente, mas apenas como consultores. 

NIT Mantiqueira: O senhor entende que há entraves burocráticos e jurídicos na aplicação da Lei de Inovação? Quais seriam os mais relevantes?
Denis Borges Barbosa: A lei de inovação presume a modificação dos papéis do estado brasileiro e da sociedade, aqui incluído o mercado. Uma instância colaborativa e igual, sem determinismos e sem clientelismos. O nosso estado (a análise de Raymondo Faoro não perdeu sua validade) é estamental, e colaboração com a sociedade é coisa ainda estranha; como notou um eminente colega, a lei de licitações foi concebida para estabelecer o comportamento do amanuense Belmiro que opera em Imperatriz, no Piauí. E os entraves derivam não de problemas legais ou burocráticos, mas dessa questão basicamente antropológica, ou política. Recentemente, num curso para integrantes dos NITs, um eminente colega da AGU notou que não existe no sistema de contabilidade da União previsão de receita de royalties pelas ICTs, e muito menos distribuição dessa participação pelos criadores. A proposta que ele fez foi de repassar esse encargo para uma entidade externa aos sistema das ICTs, que aliás mal se aguenta das pernas em suas demandas de serviço atual. Ou seja, alterar o Código de Contabilidade da União de 1923, que está tão vivo quanto D. Sebastião, e a Lei 4320, desanima todo mundo: faz parte da missão dos advogados do estado defenderem status quo e a clareza das relações administrativas. Isso não é burocracia, que se caracteriza como uma patologia do poder pelos petty officials: é falta de vontade transformadora. Essa vontade é política, e não administrativa, ou da AGU. Isso depende, em algum grau, da credibilidade do ator político e da apreensão pública da legitimidade de seus motivos.
NIT Mantiqueira: Em sua visão, como uma ICT pública pode aplicar a Lei de Inovação em benefício das empresas sediadas no país?

Denis Borges Barbosa: Pela Lei de Inovação, ICT é sempre pública. As instituições privadas não estão sob o guarda chuva da lei; estarão elas talvez sob a noção de "Organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para atividades de pesquisa e desenvolvimento", mas como elementos da articulação público-privado e não como beneficiárias diretas da Lei. A Lei é essencialmente de direito administrativo federal, com alguns elementos de direito público nacional. Sua cobertura direta só alcança assim as pessoas públicas, e as privadas por ricochete.
A lei como está já permite uma articulação público privada eficiente, se levadas em conta determinadas características. O art. 9, em particular, que trata de parcerias, é uma norma bem intencionada e potencialmente calamitosa. Os riscos que ela traz para a parte privada – e mesmo pelos gestores públicos – é tanto e tamanho que só os que não percebem ou os que não se importam com as consequências engajam numa parceria prevista em tal dispositivo. Uma parceria assim é bungee jumping, mas certamente há quem goste. Aliás toda a armadilha resulta da norma como redigida, mas a proposta do Código – nem antes nem depois da recente mudança do projeto – não se importou de mudar.

NIT Mantiqueira: A partir de seu ponto de vista, o Novo Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação pode vir a acelerar o processo de Inovação no país?

Denis Borges Barbosa: A tramitação dessa lei foi sustada e redirecionada há algumas semanas, e pelas modificações que nele se pretende introduzir, não é mais exatamente um Código. Li as propostas anteriores a modificação, e entendi que havia dois problemas cruciais: (a) falta de organicidade ao reunir uma massa de interesses e normas tópicas em se preocupar com princípios e diretrizes, o que caracterizaria melhor a noção de código; (b) a consolidação normativa tinha um viés excessivamente corporativo, e não colaborativo; seria mais um estatuto dos servidores inovadores e gestores de inovação, e não um instrumento que aperfeiçoasse a relação sociedade/estado para a comunhão inovativa. Mesmo neste plano, não listava as necessidades de direito público necessárias a tal aperfeiçoamento, como as de contabilidade pública e de orçamentação, de criação de carreiras em NITs etc.
Certos setores representativos do setor privado manifestaram grandes críticas a esse viés publicista do projeto anterior do dito código; entendo que a maioria das críticas é procedente. Não se faz inovação sem comunhão, e nisso se exige harmonia de interesses dos players de inovação, ou pelo menos algum contraponto mesmo dissonante. Mas acresço as minhas próprias críticas, de que o projeto não está publicista o suficiente, pois ele seria a oportunidade de fazer as alterações estruturais para que o novo modelo de inovação colaborativa chegasse ao nível dos serviços, das compras, do regime de pessoal, da contabilidade e do orçamento. Mas esses temas são muito pouco charmosos, ainda que hiantemente essenciais.
NIT Mantiqueira: Qual sua visão sobre o papel do INPI frente a velocidade necessária para que as ICTs possam de fato transformar o conhecimento em bens comercializáveis?

Denis Borges Barbosa: Em recente evento no INPI, me coube notar a um dos diretores da casa que o dever que a autarquia tem com a sociedade não é formular política pública de inovação, uma de suas missões no regime legal de 1970 a 1996, e como tal consagrada em acórdão do STF. Hoje existem outros players na formulação dessa política; criou-se o MCT, o Ministério da Saúde tem eminentes interesses no campo da PI e poderes legais para tanto; o MAPA tem seu próprio sistema de propriedade intelectual e interesses dominantes em outras modalidades, como as IGs; sempre, e mais do que nunca, o assunto é de interesse da política externa e de comércio internacional; surgem agora claros as intercessões entre assuntos estratégicos e defesa e inovação. Política industrial não mais papel do INPI, mas de uma articulação que neste momento estaria no GIPI, se lhe fosse garantido mais poder real.
O que disse em tal evento, e repito, é que o poder e dever do INPI perante a sociedade e o estado, é de eficiência das suas prestações; depois de entregar, a tempo e qualidade compatíveis com seus escritórios correlatos no exterior, terá alguma autoridade para desempenhar papel de política. Minha posição presume apreço elevado ao INPI, onde passei nove anos, mas atenção ainda mais elevada à demanda da sociedade brasileira.

Tuesday, November 11, 2014

Patenteabilidade de material isolado da natureza

Corre no Congresso um projeto de lei  cuidando da patenteabilidade de material encontrado na natureza, e dela isolado. Já me manifestei neste Blog sobre o assunto mas vale aqui - dado o altíssimo interesse da matéria - reunir tudo mais que já escrevi sobre o assunto. 



DOS COMENTÁRIOS À LEI 9.279/96

[q] Material biológico isolado da natureza

A exclusão dos elementos isolados da natureza é peculiaridade da norma brasileira [1]. Na verdade, até mesmo segundo o critério da intervenção humana direta, o isolamento consistiria em pressuposto válido para se identificar hipótese de incidência patentária quando da matéria isolada resultado utilidade prática e técnica.
A prática brasileira tem tratado tais hipóteses como exclusão incondicional, ainda que o isolamento importe em uma solução de um problema técnico; vale dizer, como se estivesse listado no art. 18 [2].
Note-se que não existe amparo, em TRIPs, para uma exclusão categórica de isolamento de elementos encontrados na natureza, quando deste isolamento resultar uma utilidade prática e técnica. Nem se pode, na verdade, apontar razões de política pública que justificariam este afastamento do padrão internacional. O estado da evolução da biotecnologia brasileira, exatamente em face da biodiversidade, poderia talvez justificar uma proteção que, segundo a prática corrente, é denegada [3].


[1] Também na lei andina e argentina.
[2] Das diretrizes de Exame: “2.4.2 Extratos compreendem, salvo em casos muito raros, vários compostos entre ativos e não ativos, mesmo assim, uma vez que tão-somente isolados da natureza, são considerados como não invenção pelo Art. 10 (IX). 2.4.3 Compostos químicos obtidos sinteticamente que possuam correspondentes de ocorrência natural, não havendo como distingui-los destes, não são considerados como invenção de acordo com o disposto no Art. 10 (I) – se forem não biológicos – ou (IX) – se forem biológicos.”
[3] PAES DE CARVALHO, Antonio, Utilização sustentável da biodiversidade vegetal brasileira na obtenção de fármacos inovadores para a indústria farmacêutica – o modelo Extracta, sessão temática: biotecnologia, 28/05/2010: “Dificuldade em lidar com questões de propriedade industrial relativas a produtos naturais. O Código de Propriedade Industrial brasileiro de 1996, ao tentar proteger a Biodiversidade Brasileira da invasão e apropriação internacional, acabou proibindo totalmente o patenteamento de produtos inovadores derivados de seres vivos. A ação inovadora dos pesquisadores e empresas brasileiras ficou assim submetida a regras radicalmente diferentes das utilizadas na ambiência pós-TRIPS de Propriedade Intelectual. Esse problema vem sendo trabalhado no Congresso, através de PLC que tramita na Câmara, já aprovado pelas Comissões próprias, aguardando oportunidade de progresso.”, encontrado emhttp://www.redetec.org.br/publique/media/antonio_paes.pdf

DO TRATADO
Vol. II, Cap. Vi, [ 2 ] § 3. 4. - Descobertas e inventos
Isolamento de material encontrado na natureza
A Lei 9.279/96, em seu art.10, XI veda o patenteamento de material biológico e seres vivos encontrados na natureza – ainda que dela isolados. Tratar-se-ía – em tese – de presunção de caso de descoberta [1].

Há que se notar certa tendência de eliminar, se não completamente, boa parte de tal restrição. Ver Doc. OMPI WO/INF/30-II, p. 9:
"Un producto que no haya sido divulgado al publico en forma suficiente antes de la fecha de presentación o de prioridad de la solicitud de patente en que se reivindique, pero que forma parte no separada de algún material preexistente, no se considerará que constituye un descubrimiento o que carece de novedad sólo porque forme parte no separada del material preexistente".
Comenta Correa (1989:42), antecipando a proteção do patrimônio genético introduzido pela CBD de 1992: :
"El reconocimiento de tal solución en los países en desarrollo, puede tener, como se ha señalado, enormes implicaciones sobre las posibilidades de explotar económicamente sus propios recursos".
No Direito Americano, está já razoavelmente assente que a purificação, o isolamento ou a alteração de material biológico existente na natureza [2].

Importante aspecto desse problema foi suscitado na Diretiva CE 44/98, sobre patentes biotecnológicas, como se vê na seção deste Capítulo que trata do tema.

Parece-nos que uma interpretação adequada com os propósitos constitucionais do sistema de patentes tomaria essa vedação como – mais uma vez – o índice de uma presunção de fato. 

Como ocorre em todo art. 10 da Lei 9.279/96, dever-se-ía interpretar a menção ao elemento isolado da natureza como um filtro de pertinência: enquanto tal isolamento não for útil e técnico, vale dizer, enquanto não resolver tecnicamente um problema técnico, não será patenteado. Aqui – no isolamento – recusa-se a exclusiva ao simples conhecimento, mas não à solução técnica. 


[1]  GIPSTEIN , Richard Seth, The Isolation and Purification Exception to the General Patentability of Products of Nature by 4 Colum. Sci. & Tech. L. Rev. 2 (2003) (Published January 15, 2003), encontrado em http://www.stlr.org/html/volume4/gipsteinintro.php, vistidao em 1/9/2009.
[2] Vide Chisum e Jacobs (1992:2-23), e, numa análise do processo judicial envolvendo a Genetech e a Amgen num caso de material biológico purificado, Maher (1992:88). Vide Utility and Examination Guidelines, 66 Fed. Reg. 1092 (Jan. 5, 2001), disponíveis em http://www.uspto.gov/web/offices/com/sol/notices/utilexmguide.pdf.


DO ESTUDO DE FLEXIBILIDADES (com meu projeto de lei) 

O isolamento do material encontrado na natureza
Aqui temos uma questão de muito maior complexidade. Como se viu, a Lei 9.279/96, em seu art.10, XI veda o patenteamento de material biológico e seres vivos encontrados na natureza – ainda que dela isolados.

Há que se notar certa tendência dos interesses dos titulares de direitos em eliminar, se não completamente, boa parte de tal restrição[1].

Comentava Correa [2], antecipando a proteção do patrimônio genético introduzido pela CBD de 1992 que o reconhecimento desta solução em países em desenvolvimento pode ter enormes implicações sobre a possibilidade de explorar economicamente seus próprios recursos.

Mais recentemente, o relatório do Reino Unido sobre desenvolvimento e Propriedade Intelectual nota que patentes também podem ser outorgadas no tocante a materiais biológicos com base em que teriam sido isoladas da natureza, sendo a extensão que tais práticas afetam a concorrência e aumentam os preços aos consumidores, sendo assunto de crescente debate[3].

O tratamento da questão, no entanto, é bem matizado nos sistemas nacionais [4], essencialmente levando em conta os interesses econômicos e tecnológicos em jogo. A escolha entre patentear ou não elementos que – segundo os critérios gerais de patenteabilidade ­ - seriam suscetíveis de proteção não obstante terem origem natural não se centra só numa eventual maximização de proteção em favor dos interessados de sempre.

O estado da evolução da biotecnologia brasileira, exatamente em face da biodiversidade, pode talvez justificar uma proteção que, segundo a prática corrente, é denegada [5]. Embora se proponha a seguir um texto que implemente tal propósito, deve-se enfatizar que não se endossa tal modificação sem que, previamente, estudo específico aponte a conveniência da modificação proposta em face das políticas públicas do setor[6].
Texto a alterar
Na Lei 9.279/96:
Art. 18.  Não são patenteáveis:
I – as criações industriais cuja exploração comercial deva ser excluída para proteção da moral, dos bons costumes, do meio ambiente, e da segurança, ordem ou saúde públicas;
II - as substâncias, matérias, misturas, elementos ou produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação do núcleo atômico; e
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.
IV - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal;
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.

No inciso I, coloca-se a redação em sintonia com o trecho de TRIPs, restringindo-se a impatenteabilidade às hipóteses em que a exploração comercial deva ser excluída, evitando-se assim a consagração, através dos sistemas de patentes, de criações industriais que a política pública entenda dever excluir da exploração. Mesmo sendo uma exclusiva, a patente não inclui o poder de usar o invento nas hipóteses em que haja razões de direito que impeçam a exploração da solução técnica na atividade econômica; mas a consagração pelo Estado, através da concessão da patente, introduz uma contradição no agir estatal, que TRIPs entende evitável [7].

A segunda alteração importa em aumentar os casos de impatenteabilidade, aproveitando-se da flexibilidade de TRIPs que permite denegar patentes às hipóteses em que a exploração da criação industrial importasse em lesão de valores relativos ao meio ambiente. Em contexto histórico onde se prestigiam as políticas de preservação ambiental, é talvez insustentável que se suprima da lei brasileira o caso de impatenteabilidade que consagra tais políticas, abstendo-se de utilizar uma hipótese de flexibilidade consagrada no direito internacional aplicável ao Brasil.

Ainda à Lei 9.279/96:

Art. 10 - Não é invenção nem modelo de utilidade: (...)
VIII – (revogado); e
IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais. (NR)
Parágrafo único – No caso de elemento isolado da natureza através de processo técnico, que lhe confira emprego ainda não conhecido, em solução técnica dotada de atividade inventiva e aplicabilidade industrial, poderá apenas ser reivindicada tal aplicação específica, como suficientemente  descrita no pedido de patente, restando todas demais em livre uso.

Reiterando-se as considerações acima, da necessidade de uma avaliação mais extensa das políticas públicas quanto ao setor biotecnológico nacional, a sugestão constante do parágrafo acrescido ao artigo 10 segue caminho singular. Uma das objeções ao patenteamento de material encontrado na natureza é a criação de um uma exclusividade nova sobre algo já existente, assim impedindo seus usos já conhecidos, com os efeitos anticompetitivos já mencionados.

Há algum tempo tem sido apontada como um problema que, enquanto a patente só tem de divulgar uma utilização específica de um gene para mostrar aplicabilidade industrial, uma vez que esse limiar seja satisfeito, o privilégio assegura o controle sobre todos os usos do gene patenteado; mesmo aqueles empregos que não tivessem sido descritos ou sequer imaginados. Isso levou alguns autores a argumentar que a proteção em tais casos deve ser limitada ao que fosse realmente revelada no pedido. Apesar da óbvia importância de tal questão, a matéria só foi resolvida no âmbito europeu em 6 de julho de 2010, com  a decisão do caso Monsanto Technology LLC v Cefetra BV , tendo o tribunal declarado que a norma regional impede que as legislações nacionais venham a garantir ao titular quaisquer direitos sobre tais tecnologias além dos empregos revelados no pedido [8].

A proposta redacional acima aplica exatamente essa tática de proteção específica, visando estimular a inovação com base em produtos naturais, sem criar uma exclusividade para o emprego do elemento em usos conhecidos ou a se conhecer.


[1] Ver Doc. OMPI WO/INF/30-II, p. 9: "Un producto que no haya sido divulgado al publico en forma suficiente antes de la fecha de presentación o de prioridad de la solicitud de patente en que se reivindique, pero que forma parte no separada de algún material preexistente, no se considerará que constituye un descubrimiento o que carece de novedad sólo porque forme parte no separada del material preexistente".
[2] Correa, Carlos, “Patentes y Biotecnología. Opciones para América Latina” (1991) en IICA, Políticas de Propiedad Industrial de Inventos Biotecnológicos y uso de Germoplasma en América Latina y El Caribe. PNUD/UNESCO/ONUDI, San José, Costa Rica, p. 42.
[3] Integrating Intellectual Property Rights and Development Policy - Report of the Commission on Intellectual Property Rights, encontrado em http://www.iprsonline.org/unctadictsd/docs/RB2.5_Patents_2.5.1_update.pdf
[4] Barbosa e Grau-Kuntz, op. Cit: “As noted elsewhere in this study, an important issue in this context is the status of elements isolated from nature. According to the UNCTAD Resource Book, "An important question is whether microorganisms as found in nature should be patented under this provision. It is generally accepted that ‘to be patentable, a microorganism cannot be as it exists in nature’. However, in some jurisdictions it is sufficient to isolate a microorganism and identify a use therefore to obtain a patent. Thus, in countries that are parties to the European Patent Convention a patent may be granted when a substance found in nature can be characterized by its structure, by its process of isolation or by other criteria, if it is new in the sense that it was not previously available to the public. The European Directive on Biotechnological Inventions clarifies that “biological material which is isolated from its natural environment or processed by means of a technical process may be the subject of an invention even if it already occurred in nature” (Article 3.2). In the United States, an isolated or purified form of a natural product is patentable. The concept of ‘new’ under the novelty requirement does not mean ‘not preexisting’ but ‘novel’ in a prior art sense, so that the unknown but natural existence of a product does not preclude the product from the category of statutory subject matter. Similarly, in Japan the Enforcement Standards for Substance Patents stipulated that patents can be granted on chemical substances artificially isolated from natural materials, when the presence of the substance could not be detected without prior isolation with the aid of physical or chemical methods". UNCTAD-ICTSD. Resource Book, p. 392-393.”
[5] PAES DE CARVALHO, Antonio, Utilização sustentável da biodiversidade vegetal brasileira na obtenção de fármacos inovadores para a indústria farmacêutica – o modelo Extracta, sessão temática: biotecnologia, 28/05/2010: “Dificuldade em lidar com questões de propriedade industrial relativas a produtos naturais. O Código de Propriedade Industrial brasileiro de 1996, ao tentar proteger a Biodiversidade Brasileira da invasão e apropriação internacional, acabou proibindo totalmente o patenteamento de produtos inovadores derivados de seres vivos. A ação inovadora dos pesquisadores e empresas brasileiras ficou assim submetida a regras radicalmente diferentes das utilizadas na ambiência pós-TRIPS de Propriedade Intelectual. Esse problema vem sendo trabalhado no Congresso, através de PLC que tramita na Câmara, já aprovado pelas Comissões próprias, aguardando oportunidade de progresso.”, encontrado em http://www.redetec.org.br/publique/media/antonio_paes.pdf.
[6] O PL 2695/03  daria nova redação ao inciso IX do art. 10 da Lei n° 9.279/96 (LPI: "IX - o todo ou parte de seres vivos naturais, os materiais biológicos encontrados na natureza e os processos biológicos naturais, exceto seqüências totais ou parciais de ácido desoxirribonucléico e materiais biológicos isolados de seu entorno natural ou obtidos por meio de procedimento técnico, cujas aplicações industriais sejam comprovadas clara e suficientemente no pedido de patente."
[7] Com tal alteração volta-se ao teor normativo tradicional em nosso direito. Dizia Gama Cerqueira, referindo à legislação de 1945: “A primeira proibição refere-se a invenções de finalidades exclusivamente contrárias às leis, à moral, à saúde e à segurança pública. [Melhor se diria invenções cujo fim ou cujo objeto seja contrário, evitando-se a expressão invenções de finalidade, cujo sentido é equívoco].  Invenções contrárias à lei são somente as excluídas da proteção legal por disposição expressa da própria lei de patentes ou de outras leis. Consideram-se também contrárias à lei as invenções concernentes a indústrias cuja exploração seja proibida.”
[8] Barbosa e Grau-Kuntz, op. cit: "The Advocate General of the Court of Justice (the renamed European Court of Justice) has published the first-ever opinion on the extent of protection that European patents should give to biotech patents. This controversial opinion proposes that the full Court should give a narrow interpretation to the Biotechnology Directive, which was implemented to harmonize EU laws on the patentability of biotech inventions. Although now implemented in all Member States, there are major differences in how the Directive has been implemented. This is the first time the Court of Justice has been able to consider the scope of the protection of biotech inventions, particularly DNA sequence patents, in the ten years the Directive has been in force. This opinion is therefore significant for a number of reasons: the Advocate General recommended that traditional patent protection should not be applied to DNA sequence patents. The protection given by such DNA patents should instead be 'purpose-bound".  Nabarro, UK: Biotech patents – Cutting the scope of protection, found at http://www.mondaq.com/article.asp?article_id=105008, visited on 08/14/10. In its decisions of the case (Monsanto Technology LLC v Cefetra BV and Others, C-428/08), the court accepted the Advocate General advice, stating that "2. Article 9 of the Directive effects an exhaustive harmonization of the protection it confers, with the result that it precludes the national patent legislation from offering absolute protection to the patented product as such, regardless of whether it performs its function in the material containing it.", see http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62008J0428:EN:NOT, visited on 08/14/10