Thursday, April 30, 2015

Indicação Geográfica: diversidade cultural ou padronização fordista?

Ligia Inhan é doutoranda no PPED/Instituto de Economia da UFRJ, com um projeto de pesquisa sobre Conhecimento tácito e instituições em indicações de procedência do queijo minas artesanal. Mas o que interessa muito nessa pesquisa é o conceito operativo do que seja uma indicação geográfica no sistema legal e institucional brasileiro. 
O que em outros sistemas surge como a manifestação econômica de diversidade cultural e geográfica entrou no nosso sistema como um instrumento de desenvolvimento econômico. Desenvolvimento dentro de uma noção de ótimo racional e padronizador. Vejam a carta que ela circulou hoje falando do papel do MAPA quanto às IGs, dos esforços da ABNT em criar uma norma de diversidade  e outros paradoxos da institucionalização desta modalidade de Propriedade Intelectual: 
"Estamos aumentando a burocracia das IGs e nada tem-se feito para modificar a metodologia de fiscalização do MAPA. Claro que no papel tem muita coisa. O mais impressionante de tudo é que acreditam que estão fazendo alguma coisa muito importante, mas que de fato só está no papel.
O pior da burocracia é quando acreditamos que ela substitui os atos constitutivos.
Há no MAPA um setor inteiro para cuidar do desenvolvimento regional, que aí engloba as IGs, no entanto, pouco ou nada andou no sentido de desenvolver alguma forma de entender o que é uma região caracterizada como IG. Fácil ver no papel a estrutura do órgão, seus objetivos e finalidades e a lei de IG é muito simples. Mas o que é a proteção? O que envolve uma instituição proteger um local formalmente? No entendimento do MAPA e do SEBRAE eles só se protegem SE E SOMENTE SE, eles entram no alinhamento do mercado. De um lado está o SEBRAE que entende tudo como empreendimento e se o rendimento do produtor vira lucro aí está tudo bem. A partir daí o MAPA entra para fiscalizar o que está no mercado. Nada mais lógico e natural, afinal, o pequeno produtor virou uma indústria como qualquer outra e tem que se enquadrar.

A lógica é essa.

No faz de conta que "eu protejo seu conhecimento" está inerente a transformação desse conhecimento para a economia de mercado, onde há concorrência, (que é muito natural que o seu vizinho queira utilizar meios escusos para usurpar seus clientes, ou qq outra coisa que faça vc se sentir rico e poderoso), há deslealdade, há desunião. E ainda reclamam que os produtores não são unidos e não participam das associações...
O MAPA está enrijecido com uma burocracia fiscalizadora, formalizada na lei de 1952 e não há lei de proteção que consiga romper essa rigidez. O discurso chega a ser comovedor, porque eles percebem que há rigidez. Mas, quando eu disse sobre a necessidade de se buscar entender os processos sociais que estão dentro da região e que imprimem sua característica única, eles entenderam que eu fosse contra a fiscalização. E quando eu questionei ao SEBRAE que eles deveriam buscar o IPHAN para juntamente fazer um trabalho de entendimento sobre como eles se sustentavam até então e melhorar essas condições antes de aplicar o "manual do empreendedor", eles me disseram que os produtores não os ouvem se não falar de quanto eles vão ganhar a mais...
No Brasil há ainda regiões no período mercantil, pré-capitalista, e muito em função disso, com potencial de IG, mas se as instituições continuarem aferradas em seus próprios caminhos, pouco irá restar além de um certificado de IG. Mas é papel, então deve valer alguma coisa".

Thursday, April 09, 2015

Certificado de Registro de Programa de Computador (em especial) tem a natureza jurídica de TÍTULO de Propriedade Intelectual?



Meu caro Renato,

Uma pergunta em abstrato, assim, é irrespondível. A Lei 9.279/96 usa a expressão “título” em um grande número de acepções divergentes. Título como o nome que um livro tem na capa, ou o jornal no seu topo; o breve resumo da matéria de uma patente;  o nome de um estabelecimento comercial; a noção de “causa de direito”, quando fala “a qualquer título”; etc.  A Lei mais genérica, de registros públicos, menciona “títulos e documentos”, prescrevendo  que o órgão registral levará tais títulos (e documentos...) em conta para fins diversos. Distinguem-se nessa lei os usos da expressão “título “ tanto como causa jurídica e quanto como testemunho documental, mas sem muita precisão.

Vejamos, de outro lado, o Código Civil: “Art.1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (Código Civil Brasileiro de 2002)”. Se tem então o registro (que transfere o direito real) do título, aqui entendido como um causa jurídica de cunho documental, que é precedente ao registro. Mas há momentos em que o “titulo” se desnuda em causa jurídica, sem qualquer exigência de testemunho documental: Art. 1.201. (...) Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. (Código Civil Brasileiro de 2002).

Mas indo ao caso específico, nem as leis de PI, nem a lei registral geral, definem, o que é “título de propriedade industrial”.  

Então, a resposta direta à sua pergunta é: depende do que você quer dizer falando de “título de propriedade industrial”? É para que propósito? Documento interno do NIT? Contrato? Contagem estatística?

Mas uma coisa pode ser dita de início. Nem a carta patente, nem o certificado de registro de marcas, é um “título” autônomo e literal, pelo menos no sentido de um direito cartular contido  no papel em que ele se descreve. Há sim, títulos cartulares, como explica o comercialista Fábio Ulhoa:
 Cartularidade "é a garantia de que o sujeito que postula a satisfação do direito é mesmo o seu titular, sendo, desse modo, o postulado que evita o enriquecimento indevido de quem tenha sido credor de um título de crédito ou negociou com terceiros (descontou num banco , por exemplo )".
Tal documento é chamado de título de crédito porque cumpre os requisitos estabelecidos em lei, se assim não o for, não se tratara de título de crédito. Não existe credor sem a posse efetiva do título neste caso, mesmo que a pessoa possua os direitos creditícios, este não poderá recorrer em juízo para exigir seu cumprimento.
Assim, sem o título de crédito – fisicamente, na sua mão – não há como exercer seus direitos de credor. Não se vai buscar a causa jurídica fora do documento, pois ele é também autônomo e literal.  Mas isso não é a regra geral em direito. Na verdade, esses são casos singularíssimos.
Quando você nasce com vida, o fato do seu nascimento constitui seu ingresso no mundo do direito, independentemente da certidão. É a vida, e não o papel, que faz eclodir as consequências jurídicas. Você pode ter algumas restrições pragmáticas ou de meio de prova pela falta da certidão de nascimento, mas em nada isso abala a criação do direito pelo nascimento com vida. No caso dos direitos que dependem de declaração e constituição por um ato estatal, como o de patentes, há um ato de estado, ou ato administrativo, que deflagra os direitos pertinentes; aliás, a emissão do documento que atesta o ato estatal não é o que deflagra esse direito, mas a publicação do ato na RPI. Com ou sem a carta patente, existe a patente e pode se exercida, em virtude da publicação que dá ciência do ato estatal de concessão.

Bom, então se tem títulos cartulares, e documentos que apontam para o título, mas nele não se contém o título (a vida e não a certidão de nascimento; a concessão da patente pela publicação na RPI, e não pela entrega da carta patente). O título (a patente, o registro, etc.) não está contido no papel.

Qual o papel da carta patente, então? É um instrumento informacional, no qual se reúnem os dados básicos, e se facilitam os negócios jurídicos. Mas vezes sem conta fui réu em ações em que o titular da patente não tinha carta patente, e o processo prosseguia sem a exibir. Na verdade, creio que isso não deveria ser admissível, pois o réu necessitaria ter exata informação do direito que se lhe antepõe, o que não é sempre fácil sem a versão final da patente como deferida – e o INPI não tem cópia guardada das cartas patentes.

Assim, se parece possível definir como “titulo de propriedade industrial” a patente, o registro, etc., o mesmo não se dirá da carta patente, dos certificados de registro, etc. Quando você olha para os dispositivos legais pertinentes, isso se vê:
Art. 38. A patente será concedida depois de deferido o pedido, e comprovado o pagamento da retribuição correspondente, expedindo-se a respectiva carta-patente. (...)    § 3º Reputa-se concedida a patente na data de publicação do respectivo ato. Art. 39. Da carta-patente deverão constar o número, o título e a natureza respectivos, o nome do inventor, observado o disposto no § 4º do art. 6º, a qualificação e o domicílio do titular, o prazo de vigência, o relatório descritivo, as reivindicações e os desenhos, bem como os dados relativos à prioridade.
Aqui vem mais uma distinção: há direitos que nascem de um ato estatal que declara seus pressupostos e constitui a exclusividade, e há outros direitos que nascem independentemente da ação estatal. Nascem da simples criação da obra. Tal acontece com as obras autorais e, por assimilação, o software. Assim, a patente, o registro de marcas, de topografias, de cultivares, de desenho industrial, todos esses nascem de um ato estatal. Mas a obra autoral, nela incluída o software, independem em sua proteção de qualquer ato estatal. 

O Certificado de registro de software no INPI tem a mesma importância jurídica de uma fotografia que você tira de um bebê novo: ela serve para por no facebook e mostrar para os amigos, mas não tem nenhuma, nem a mais remota das repercussões em direito. A não ser comprovar que você pediu registro (tirou foto com iphone). As pessoas usam o registro de software basicamente para impressionar burocratas, compradores e namoradas,  partindo do princípio de que esses não tenham realmente ideia do que é um registro de software; e – numa hipotética discussão judicial – como prova de que, na data em que pediu o registro, o software existia mais ou menos do jeito que foi depositado.

Assim, se neste caso específico você definir “título” como a causa jurídica do direito de exclusiva, o título resulta do ato de criação, e de nenhum ato estatal.  


Mas – sempre – título é qualquer coisa, dependendo de definição contextual. Os meus “títulos de propriedade industrial” são os livros que escrevi que tratam da questão, e não os meus romances, novelas e contos. 

Tuesday, April 07, 2015

Integridade, domínio público e o Pequeno Príncipe.

Toda a humanidade em rede sabe que as obras de Antoine Saint Éxupery entraram no domínio do público brasileiro no primeiro dia de 2015. Saíram assim do patrimônio dos sucessores do autor francês e se integraram no domínio inclusivo dos beneficiários da lei autoral brasileira. Como as praças públicas, e muitos elementos desse patrimônio comum, as obras de Saint Éxupery entraram na posse de cada um de nós, e passaram a ser suscetíveis de defesa desse exercício comum - inclusive por possessória - por cada um de nós.

Agora vem um tema engraçado. O que cai no domínio do público no Brasil são os direitos patrimoniais. Persistem alguns dos direitos pessoais, ditos morais, como o de integridade da obra.

Esse direito específico tem a seguinte

Art. 24. São direitos morais do autor: (...) 

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra.

Assim, se tem uma norma complexa: o titular desse direito pessoal pode opor-se a quaisquer modificações da obra, desde que possam prejudicar ou atingir o autor em sua honra ou reputação. Somam-se duas coisas para se ter o direito pessoal: violação da obra como concebida e mais lesão ao valor honra ou reputação

É preciso ficar bem claro que se tem uma tutela aqui de interesses pessoais. Não se trata da defesa da cultura, que resvala num tombamento ou outra medida de resguardo comparável, mas não se volta à honra ou a reputação do autor, pessoalmente. O autor pode odiar a sua obra com as veras d' alma e rezar para que a destruam; pode arrepender-se de jamais a ter concebido; mas o interesse pública na preservação da obra íntegra se oporia a isso. 

Pois existe o direito à integridade da obra como testemunho do processo cultural, numa permanência que se impõe pelos interesses ao acesso à cultura e outros valores; e existe a tutela da honra e reputação do autor, o que é coisa diversa. O exemplo do TJRS, AC  70018223735/2006, Décima Câmara Cível Rel. Des. Paulo Antônio Kretzamm, 29 de março de 2007 é ótimo para provar esse ponto: o tribunal gaúcho reconheceu que um livro de gramática cheio de erros introduzidos pelo editor abalava a reputação do gramático autor. Ou pelo menos diluia seu fundo de comércio....

Esta integridade que se defende no art. 14, IV da LDA é a que tutela a honra ou reputação do autor. Assim há distintos interesses jurídicos na integridade de uma obra, que não necessariamente se alinham.  

A questão se torna ainda mais enevoada quando se notam certos autores que afirmarem  que, uma vez os direitos patrimoniais caiam no domínio do público, esse poder de resguardar a honra e a reputação do autor passaria para o estado ou o Ministério Público (por exemplo, Rodrigo Moraes). A meu ver o estado não se sucede nesse direito pessoal, mas assume o direito de tutela da cultura, quando e se a obra exerce esse testemunho.  

Mas reviendrons à nos moutons. A questão de Saint Éxupery (que tem jiboia e raposa mas não necessariamente carneiros) é a edição desse livrinho que se vê na ilustração, do qual (está na capa) as aquarelas também são do autor.  Será que outros editores, com amparo no domínio do público, podem lançar edições com outra diagramação, diversa da original, sem ofensa ao art. 29? Afinal, caiu em domínio comum....

Parece que não. A diagramação original, que deve ser complicada senão os novos editores não a estariam rifando nas publicações 2015, parece ser parte da concepção original. Digo "parece" porque há sim uma alteração esteticamente relevante se você abandona a diagramação feita pelo Saint Éxupery. Se tal modificação invade a honra e reputação do aviador morto são outros quinhentos. Mas há sim violação à integridade da obra como concebida. A diagramação não era uma conveniência, mas elemento do processo criativo. 

Pois é o que conta a biografia do autor, escrita por Stacy Schiff (que ganhou o Pulitzer ainda que não com esse livro)  e publicada pela Da Capo Press (1996). Lá pela p. 389, o biógrafo narra:
"He continued through the early part of the winter, to fiddle with his illustrations for The Little Prince and to agonize over their proper placement in the text"
 O autor sofria agonicamente com a diagramação. Não sei se isso põe em questão honra ou reputação, mas certamente merece tutela de direitos pessoais.